sexta-feira, 25 de fevereiro de 2011

Sobre as mandingas da mulata velha


Foi num dia chuvoso e triste (porque os dias chuvosos são sempre tristes) que tive o prazer de conhecer o compositor, historiador e escritor Nei Lopes. A alegria de Nei destoava daquele dia cinzento e com algumas poucas palavras iniciais pude perceber que estava diante de uma das principais referências intelectuais da cultura brasileira.


Após um agradável almoço com Fernando Ramos. Acompanhei Nei Lopes até seu hotel localizado na rua Fernando Machado. No trajeto, que incluiu a rua Riachuelo e a Borges o compositor carioca mostrou-se muito simpático, observava com atenção as ruas do centro, seus passos eram curtos, porém firmes. Naquele breve trajeto conversamos um pouco sobre seu livro “mandigas”, como ele se referiu, depois externou sua preocupação de não haver dentro da literatura brasileira, nenhum livro que representasse os negros adequadamente, fez apenas uma ressalva; a de que o livro Josué Montello “Os tambores de São Luiz”. “seria um livro que fugiria dos estereótipos”. Sua preocupação vai na linha de que mesmo na ficção contemporânea a representação do negro continua estigmatizada, sempre associada a violência e a miséria, com o argumento de que é a “realidade”, mas Nei Lopes complementou “pode ser a realidade mas não é a única”. Neste mesmo trajeto cumprimentei-o pela bela composição de “Samba do Irajá”, Nei contou que certa vez, quando gravou este samba com Chico Buarque, Chico disse ter sentido um arrepio, algo que não sabia explicar, tamanha era a beleza do samba.


Embora pouco conhecido entre os gaúchos, Nei Lopes é dono de uma ampla produção musical de qualidade e sofisticação. Além disso, Nei possui parcerias com Djavan, Milton Nascimento, Gilberto Gil, Ed Mota, João Bosco, entre outros. Tendo uma extensa produção teórica centrada na cultura afro-brasileira, com mais de 20 livros publicados (entre eles a ambiciosa Enciclopédia Brasileira da Diáspora Africana), Nei Lopes esteve em Porto Alegre para lançar seu primeiro romance “Mandingas da mulata velha na cidade nova”, pela editora Língua Geral, durante o Festipoa.


“Mandingas” merece ser saudada porque é uma obra peculiar, já que se propõe a transportar o leitor para dentro de um Rio de Janeiro mitológico, como bem coloca o escritor Alberto Mussa, no prefácio do livro. O cenário ambientado em plena Praça Onze, ou seja, no berço do samba, abrange o período de 1870 a 1930 e está repleto de baianas, batuques, blocos de carnaval e manifestações religiosas. O autor põe nesta cidade mítica personalidades centrais que constituíram a identidade carioca, como por exemplo, Catulo da Paixão Cearense, José do Patrocínio, André Rebouças, João Candido, Sinhô e muitos outros.

O livro está divido em duas partes; na primeira, é o repórter Henrique da Costa, ou “Costinha”, ou “Diga-mais” (hilário cacoete do repórter ao indagar seus interlocutores) quem conduz a narrativa em busca de informações sobre Tia Honorata que é na verdade a metáfora das baianas que compuseram a identidade do Rio de Janeiro. Na segunda parte, temos “a verdadeira história” de Tia Honorata sendo contada através de um manuscrito.


Aliás, é interessante observar que a imagem de Honorata é construída por diferentes relatos, desde os mais eruditos até os relatos da “gente do povo”. No caso dos mais eruditos, os termos etimológicos e técnicos contidos nas falas dos personagens são explicados de modo quase didático, mas sem subestimar o conhecimento do leitor. Além disso, o autor acerta no tom da narrativa ao produzir efeitos de humor em algumas cenas.
Nesta ficcionalização histórica, Nei Lopes lança mão de um vigor teórico consistente sobre a cultura brasileira e africana, demonstrando o jogo sincrético entre as religiões do Candomblé, do Catolicismo e da cultura Mulçumana.


Deste modo, “Mandingas da mulata velha na cidade nova” também se propõe a refletir sobre as influências islâmicas reproduzidas no complexo mundo religioso carioca. É, portanto, uma investigação das heranças muçulmanas, heranças essas que construíram os mitos fundadores da religião de matriz africana no Brasil. Não é a toa que Nei Lopes evoca a Guerra dos Malês ocorrida em 1835, escravos negros que sabiam a língua árabe e liam as suras do Alcorão. Assim como coloca personagens recitando belas passagens do Livro Sagrado, também critica a distorção da cultura islâmica e promove um regresso primoroso as origens identitárias do Brasil profundamente marcadas pela diáspora africana.


Enfim, “A mulata velha”, esta grande metáfora da Bahia, reconstitui, como o próprio narrador afirma, uma “África em miniatura” dentro da cidade nova. É o repórter Costinha (ou Diga Mais) que nos conduz nesta investigação pelas ruas do Rio de Janeiro, nesta busca pela ancestralidade da cultura não só carioca, mas, sobretudo, da cultura brasileira. Esperemos a volta deste “mandiga” para ter a oportunidade de solicitar a ele que “Diga mais”.

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