segunda-feira, 13 de fevereiro de 2012

Mini crônica sobre a ausência


Por muito tempo achei que a ausência é falta.

E lastimava, ignorante, a falta.

Hoje não a lastimo.

Não há falta na ausência.

A ausência é um estar em mim.

E sinto-a, branca, tão pegada, aconchegada nos meus braços,

que rio e danço e invento exclamações alegres,

porque a ausência, essa ausência assimilada,

ninguém a rouba mais de mim.

. Carlos Drummond de Andrade



A separação amorosa é a presença da morte na vida. É o contato com a ausência e com a dor. O amor é sempre união e separação. O amor são duas margens imóveis. A ponte é a possibilidade de chegarmos a outra margem. Às vezes, nós conseguimos atravessá-la. Mas a nossa margem, aquela imóvel, imutável, jamais poderá cruzar a ponte. Ela permanecerá sempre lá, do outro lado. E, às vezes, depois de passarmos o tempo necessário de sentirmos o outro, de fazermos uma espécie de cartografia às escuras dentro uma terra estrangeira, temos de ir, temos de voltar a nossa margem, pois a margem do outro, por mais que nós a conheçamos, por mais que a terra faça parte dos nossos passos, ela nunca será nossa. E de repente a margem do outro torna-se áspera, dura, difícil. E já não nos é familiar. E este é o momento de partir. Atravessar a ponte e regressar para nós mesmos, carregando nos olhos aquilo que vimos do outro lado do rio. Nesse caso, não há perdas. Só ausência. A ausência assimilada. Aquilo que se foi. Que nos pertence e que permanece em nós. Aquela que ninguém nos rouba. 



















quinta-feira, 26 de maio de 2011

A minha estrela da manhã

Esta manhã acordei lúcido como quem passou a noite num deserto.

Minha febre alta, devido à gripe, me fez sofrer alucinações pela madrugada. Senti-me com se estivesse dentro do conto “Sur” do Borges.

Acordei lúcido porque as manhãs são sempre lúcidas. A cada dia que passa, percebo que a lucidez pode ser um dom ou talvez um castigo, porque quando nos tornamos lúcidos é preciso saber que isso é para sempre.

A partir daí, a vida não perdoa mais nossa desatenção. Portanto, é necessário aprender a tristeza desde cedo. Por outro lado, creio que não há um tempo particular para conhecer a dor, justamente porque a vida não escolhe idade quando quer doer.

Esta manhã, ficou mais claro para mim que só a dor e a lucidez nos tornam mais atentos para a vida. A aprendizagem do desgosto nos prepara pra sermos lúcidos. Desde cedo conheci o sofrimento. Eu não sabia, mas conhecer a dor precocemente era um modo de não ser pego de surpresa. Pois quando surgem aquelas situações limites em que é preciso optar entre sucumbir ou endurecer, a dor e a lucidez te mandam à merda e você só pode endurecer porque sucumbir é pouco quando se pretende algo na vida.

Esta manhã lembrei que quando completei 13 anos, acordei estranhamente. Quero dizer que quando acordei parecia que as cores haviam desbotado, todas as cores me pareceram opacas. Minha mãe me levou ao médico, acharam que eu tinha alguma espécie de daltonismo. Após os exames, o médico disse que eu não tinha nada. Anos mais tarde compreendi que eu havia sido, na verdade, acometido pela dor da lucidez. Desde então minhas paisagens beiram ao cinza, embora eu saiba distinguir as cores, há sempre algo de triste nas coisas que vejo.

Esta manhã compreendi que a lucidez precisa das palavras. Toda a tragédia humana passa pela palavra ou pelo silêncio. A gente só conhece a lucidez quando entendemos luz da manhã, creio que nenhuma outra luz possa ser tão lúcida. As manhãs não foram feita para crer, as manhãs foram feitas para desconfiar.

As missas, as orações, as preces não deveriam ser feitas pela manhã. Não se acredita em Deus pela manhã. Só a noite é capaz de guardar segredos. Todos os mistérios são engendrados na força da noite. A manhã não guarda segredos, porque ela os revela. Nenhuma ressaca acontece durante a madrugada. A luz da manhã é filosófica.

Ultimamente, tenho lutado para ser um homem das manhãs. Anseio pelo noite, anseio pelos sonhos e também pelos assombros dos meus pesadelos. Mas é pela manhã que retorno a mim. É pela manhã que meus sentidos se desvelam e se refazem.

domingo, 3 de abril de 2011

A maldade tem bons sentimentos

Em algum lugar Rimbaud teria dito que o amor não tem bons sentimentos. A frase é também título do excelente livro do escritor Raimundo Carrero. Aproveito a idéia para dizer que a maldade também tem bons sentimentos. Tenho pensado na maldade como algo a ser cultivado, assim como a bondade. Explico-me. Cada vez mais acredito que somos pessoas más por natureza. Sempre desconfiei de Rosseau com aquela balela colonialista do mito do bom selvagem. A sociedade não corrompe ninguém. Já nascemos corrompidos. E isso nada tem a ver com o pecado original católico. Isso tem a ver com aquilo que Edgar Allan Poe discute no "demônio da pervesidade". Tem a ver com nossa natureza que pende para o egoísmo da sobrevivência. Sobreviver nos torna egoístas. Nascemos más. As crianças são más. E ao contrário do que se pensa é a bondade que é um sentimento lento e difícil. Durante 34 anos fui bombardeado por pessoas más me dizendo; “Guri fique onde você está”, “Te contenta com isso”. “Não adianta, tu não vais conseguir.” A duras penas percebi, portanto, que não havia nada de errado com as pessoas. O que estava errado era a vida. Sim, culpo a vida por me dar esse olhar patético de bondade sobre as pessoas. Sempre acredito que as pessoas que vou conhecendo são boas. No entanto, sou surpreendido com atos de maldade, mesquinharias. Mas não guardo rancores. Não lamento. Não tenho nada a ver com as lamentações. É por isso que escrevo. Escrevo pelo único motivo que vale apena escrever: para me vingar da vida. Para mim, a vida deve satisfações à literatura. Meus escritos são um acerto de contas com a vida. Entretanto, para cobrar dela, é preciso cultivar um pouco de maldade. É dessa maldade que estou falando. Dessa que nos protege. A maldade que nos move a erguer um ímpeto sobre a vida, e nos permite discordar dela. Como um ato divino. Ser Deus em nós mesmos. Desde que o mundo é mundo, Deus vêm praticando suas maldades. Deus envelhece na violência dos leões. Tenho esse Deus dentro de mim. Deus sábio. Não estou fazendo nenhum elogio à maldade. Estou apenas cobrando o direito de uma explicação. A vida tem de se explicar. Uma temporada no inferno não faz mal a ninguém. Por isso insisto: A maldade tem bons sentimentos. O mal purifica. Dostoiéviski que o diga. O amor é doloroso, por isso não tem bons sentimentos. Como a vida. Entre a maldade e bondade prefiro os dois.

domingo, 27 de março de 2011

Cavalos não choram

Minha mãe morreu quando eu tinha 10 anos. Morreu de doidice. Lembro do meu pai fumando desgovernado e nervoso no dia do enterro. Ela teve uma doença que a fazia esquecer das coisas, disseram que não havia cura. Primeiro ela começou a esquecer onde ficavam os lugares, depois esqueceu o nome dos parentes, até que um dia esqueceu dela mesma. Certa vez, fiquei com medo de que ela esquecesse de mim, mas isso não aconteceu porque uma mãe jamais esquece um filho.

Alguns meses antes dela ficar doente apareceu em nossa porta um vendedor de livros. O moço tinha de tudo: dicionários, receitas, medicina familiar e alguma literatura. Em nossa casa havia poucos livros. Minha mãe escolheu um livro grande com um cavaleiro desenhado na capa. Antes de comprá-lo, ela ficou passando a ponta dos dedos nele todo. Em seguida, perguntou ao vendedor quanto era, e a julgar pela cara de minha mãe parecia ser muito caro. Mas nesse momento ela me olhou tão atenta e eu gostava tanto disso porque era o jeito dela de dizer que me amava. Aí ela foi até o quarto e pegou o dinheiro que ela tinha guardado escondido do meu pai graças as faxinas que ela fazia na vizinhança. Passou a mão mais uma vez na capa, pois, mesmo tendo lido pouco na vida minha mãe achava que um livro sempre carregava alguma coisa importante. O livro era tão grande e tinha tantas páginas que eu nunca pensava que uma pessoa poderia ler ele todo. Depois que minha mãe morreu, não me desgrudei mais do livro. Eu ainda não sabia as letras, pois ficava ajudando meu pai nos serviços e não havia tempo para estudos, mas eu fingia que lia, eu passava os dedos pelas páginas, imaginava uma história em que as mães nunca morrem e a gente nunca chora, porque não existem dores.

Meu pai bebia, e as pessoas quando bebem parecem ter um cheiro diferente, elas cheiram a qualquer coisa de triste. Comecei a trabalhar com meu pai aos oito anos de idade. Meu pai tinha uma carroça e um cavalo chamado Campeão. Nosso trabalho era carregar coisas. A gente fazia a mudança das pessoas, ou então levava compras ou móveis para elas. Às vezes era divertido, embora eu achasse esquisito chamar de trabalho aquele negócio de carregar coisas pra lá e pra cá. Mas eu gostava mesmo quando passávamos na rua onde havia uma casa muito grande. Nessa rua havia uma moça morena muito bonita que ficava na janela. Ela era mais velha do que eu, porém quando eu passava ela sempre sorria para mim e eu ficava pensando que quando crescesse ia querer viver sempre ao lado de um sorriso como aquele. Depois da morte de minha mãe, meu pai começou a beber mais, tinha dias que eu ficava sem comer porque eu ainda não sabia fazer comida e meu pai não queria cozinhar. Às vezes, faltava pão e quando a fome era grande, eu reclamava. Meu pai com aquele cheiro triste dele, colocava as mãos nos bolsos e me dava umas moedas. Dizia que era para eu me virar com aquilo. Outras vezes, meu pai parecia feliz e me levava com ele para o bar, depois mandava que eu molhasse minha boca na espuma da cerveja para que eu fosse me acostumando a tomar o seu lugar como chefe da família, porque a tua mãe já morreu, daqui a pouco sou eu, e a vida é assim guri, a vida é assim. Depois ele sorria para os amigos que estavam na mesa como quem diz que o filho de nove anos já era um homem. A alegria de meu pai, nessas ocasiões, durava bem pouco. Ia até a quarta cerveja. Depois ele baixava os olhos, se calava e esquecia de mim.

Eu gostava quando chovia, não gostava dos trovões pois eu achava que Deus não precisava assustar as pessoas com tanto barulho só para avisar que vai chover. Mesmo o nosso telhado que estava quebrado e quase já não fazia diferença nenhuma chover na rua ou dentro de casa, eu gostava da chuva, gostava do barulho dos pingos, dos pingos batendo no vidro da janela e escorregando, assim, um atrás do outro. Que nem um rosto chorando. Nossa casa estava bem velha. Quando minha mãe era viva, meu pai ainda fazia alguns reparos. Depois não fazia mais nada. Parecia que tinha desistido da vida, pois há pessoas que já não querem mais viver, mas também não querem morrer, acho que assim era o meu pai. A minha cama não era das piores, era macia e quente. O que me irritava, mesmo, eram os barulhinhos que eu escutava embaixo dela. Eu sabia que eram os camundongos que ficavam roendo algum resto de comida que eles encontravam na cozinha e vinham justamente comer em baixo da minha cama. Um dia decidi pegar um deles, montei uma arapuca com uma caixa de sapato do meu pai, juntei um graveto e enrolei um pedacinho de queijo nele. Deixei a caixa apoiada no graveto de um jeito que qualquer toque faria a caixa cair em cima do camundongo. Dito e feito. Peguei ele. Fiz uns furinhos na caixa para poder vê-lo, era pequeno e agressivo, pois ele dava saltos dentro da caixa.

O camundongo passou a me fazer companhia, eu colocava a caixa em cima da cabeceira. Duas vezes por dia eu levava um pedacinho de queijo ou de pão para ele não morrer, depois fiz um buraquinho maior e coloquei água. Quando eu ficava muito triste, eu pegava o livro que minha mãe tinha me dado, segurava ele com força, depois abria em qualquer página e fingia uma história para o camundongo. Inventava ilusões. Volta e meia meu pai me pegava mentindo leituras. Ele me olhava e dizia que eu estava ficando doido igual a minha mãe. Eu fazia silêncio. Esperava ele sair e depois eu chorava.

Num outro dia meu pai encontrou o camundongo na minha caixa, ficou nervoso, disse que eu estava doente e me levou ao médico. Era o doutor Fagundes, o mesmo que cuidou de minha mãe até ela morrer. Foi ele quem descobriu a doença dela. Ele sempre era muito bom comigo. As pessoas mais velhas têm a mania de mentir para as crianças dizendo que estão prestando atenção nelas, mas é mentira. O Dr. Fagundes não era assim, quando ia com minha mãe visitá-lo, ele me olhava de verdade e quando perguntava como eu estava, ele realmente queria saber. O Dr. Fagundes era careca e tinha um bigode que quase tomava conta de todo o seu rosto, eu sempre achei muito engraçado as pessoas carecas.

“Este guri está louco, Dr. Fagundes, endoideceu” dizia meu pai “veja o senhor que agora ele deu de andar com ratos dentro de uma caixa, quando não é isso, fica pra lá e pra cá com um livro velho e falando sozinho”. O Dr. Fagundes nos olhava sereno, um olhar de quem já sabe alguma coisa sobre a vida. “Olhe seu José, seu filho perdeu a mãe há pouco tempo, ainda está se acostumando, é difícil para ele e para o senhor. Digamos que a caixa com ratos é uma coisa meio esquisita mesmo, mas o livro... o senhor devia até se orgulhar” “Ora, se orgulhar do quê? Ele não sabe ler Dr. É tudo inventado por ele”. Nesse momento o Dr. Fagundes olhou para mim e sorriu, e era um sorriso tão terno e tão atencioso que eu quase esqueci da minha tristeza. “Seu José, o Juvêncio precisa de uma escola, precisa aprender a ler” “Mas e como é que eu fico com o serviço, Dr.?” “Talvez o senhor devesse encontrar um outro ajudante. O seu filho precisa aprender a ler, ir para escola, se instruir. Assim, no futuro, ele poderá até lhe ajudar com os documentos da sua aposentadoria”

Meu pai gostava dessa palavra “aposentadoria”, ele se achava um injustiçado, “uns com pouco e o outros com tanto” era uma de suas frases preferidas. Acho que foi a primeira vez que meu pai achou um motivo para alguém estudar. “Ele tem comido direito?” continuou o Dr. “É claro, o Dr. acha que não sei cuidar do meu filho?” “Não, não é isso, é que devemos ficar sempre de olho nas crianças. O senhor me responda mais uma coisa; como ele tem reagido a falta da mãe? O seu filho tem chorado?” “Não, ele nunca chora, Dr., este guri parece uma parede, ele não chora, não ri, não fala. Acho que ele vai ficar igual a mãe dele” Quando ele dizia isso eu sentia aquela raiva de morte do meu pai, porque ele não sabia nada de mim, não sabia que eu chorava, que chorava no escuro, escondido, pois aprendi que chorar é uma coisa sagrada, requer um tempo e um lugar sagrado. O meu lugar era a solidão. Meu pai ainda um pouco contrariado me deixou ir para escola, seguindo o conselho do Dr. Fagundes já que eu poderia ajudá-lo nos documentos de sua aposentadoria. A minha primeira professora foi a D. Ernestina. Já era uma senhora. D. Ernestina era gorda e usava uns óculos grandes que deixavam ela mais feia, mas quando a gente queria agradar a professora, nós dizíamos que os óculos faziam ela ficar mais jovem. Alguns velhos são bobos pois gostam de ouvir que não aparentam a idade que têm, querem ser jovens até na velhice. A nossa sala de aula era uma casinha de madeira e tinha lugar para vinte alunos, mas isso nunca acontecia, pois sempre tinha mais, e éramos obrigados a dividir a cadeira e a mesa, ou então tínhamos que sentar no chão mesmo. A escolinha ficava no terreno do seu Graciliano. A gente achava que ele era um homem bom, mas depois descobri que ele fez a escolinha em troca de favores políticos. Pois ele não queria nem saber se a gente estava aprendendo alguma coisa, só queria manter a imagem de homem generoso, que está preocupado com o progresso do país e que as crianças são o futuro. E no fim do discurso dele a gente tinha que aplaudir. D. Ernestina tinha um jeito todo dela de dar aula. Ela falava muito, dizia coisas da vida dela, da infância, que, para nós, eram coisas de muitos séculos atrás. Dizia que no seu tempo aprender a ler não tinha toda essa mordomia, não. De ter uma escola pertinho de casa e de ter uma professora boa que nem ela.

Não é de uma hora para outra que aprendemos ler, é aos pedaços, mas eu tinha um objetivo que me incentivava: queria aprender a ler logo para poder saber afinal que livro era aquele que a minha mãe havia comprado. Eu tinha pressa, não queria mais ter que adivinhar a escrita, eu queria saber as letras de verdade. Um dia eu não agüentei esperar, levei o livro para a aula, aquele livro pesado e grosso. Quando cheguei com o livro na frente da D Ernestina, ela o pegou, folheou e depois perguntou o que é que eu fazia com aquele livro. Expliquei que tinha trazido de casa, pois minha mãe tinha morrido de doidice e quando era viva estava sempre com ele, e que eu trouxe para que ela lesse para nós, pois eu não queria mais adivinhar as letras daquele livro, eu queria saber ele. Nesse momento D. Ernestina encheu os olhos d’água. Eu perguntei qual era o nome do livro, ela disse que era Dom Quixote. D. Ernestina nos explicou que era a história de um cavaleiro muito atrapalhado, mas muito corajoso que acreditava nos livros e passou a ver o mundo diferente, sonhava um mundo mais bonito onde as pessoas eram boas, educadas, honrosas e felizes. E eu juro que eu senti uma vontade danada de chorar. E a partir daquele dia eu me esforcei muito para aprender a ler direito e descobrir quem era aquele cavaleiro que acreditava nos livros.

No dia em que eu ia contar a história do Dom Quixote para o meu pai eu entrei entusiasmado em casa gritando por ele, eu nem me importava se ele tivesse com aquele cheiro triste das pessoas que bebem. Fui no quarto e nada. Chamei por ele no corredor, cheguei a pensar que não estivesse em casa. Bati na porta do banheiro. Esperei um pouco, e nada. Fui abrindo a porta devagar até ver meu pai pendurado com uma corda enrolada no pescoço. O corpo dele balançava igual ao pêndulo de um relógio. Dei um grito forte e triste. Larguei o Dom Quixote no chão, e corri até ele. Bati em suas pernas, mas nada adiantou. A vida, às vezes, não perdoa atrasos. Depois que meu pai morreu fiquei desnorteado. Não tinha a quem recorrer. Foram os meus tios, que também bebiam e tinham lá o cheiro tristes deles, que cuidaram do enterro. Mas esqueceram de mim. Ninguém veio perguntar o que eu ia fazer dali para frente. Vieram umas vizinhas que olharam nossa casa caindo aos pedaços. Me lançaram aquele olhar indiferente. Depois descobri que ninguém ali gostava do meu pai porque além de beber e arranjar brigas com os outros, ele devia dinheiro para o nosso vizinho Agenor. No dia que o meu pai foi enterrado escutei seu Agenor resmungando que agora quem é que ia pagar as dívidas do meu pai, aquele pinguço caloteiro, depois cuspiu no túmulo dele e foi embora. Fui para casa, dormi sozinho aquela noite, sentia falta do meu pai, mas eu não chorava. Vai ver é porque a dor que eu sentia era tão grande que não podia caber num choro.

No dia seguinte comecei a sentir fome, precisava arranjar comida. Foi então que resolvi vender o campeão, na verdade este nome era um deboche do meu pai, porque aquele cavalo era um perdedor, como o meu pai gostava de dizer. Então eu sai pelas ruas oferecendo o campeão, mas eu não queria vender para qualquer pessoa porque o campeão não era qualquer cavalo. Então lembrei de ir bater na porta daquela moça bonita que sorria para mim. Toquei a campainha e fiquei esperando, aí ela apareceu sorrindo como sempre. “A senhora quer comprar um cavalo?” “E por que é que eu compraria um cavalo” disse ela sorrindo Não sabia o que dizer. “Qual é o nome dele?” Ela perguntou. “Campeão” “Campeão? Que nome bonito, hein?” Ela disse sorrindo novamente, “ e porque esse nome?” Eu poderia ter dito que foi meu pai que botou esse nome só para fazer troça do campeão, mas fiquei com vergonha. “É porque ele é campeão” eu disse “De corrida?” “Não” “Ora, de que, então?” “Ele é um cavalo muito feliz” “Não entendi” ela disse paciente. “Ele é campeão porque ele sempre ganhou da tristeza” “E como é que você sabe disso?” “É porque eu nunca vi ele chorar” “Ora, mas cavalos não choram” “Vai ver porque todos os cavalos são felizes”. Eu disse A moça colocou a mão no meu rosto, depois entrou e em seguida voltou com um bolo de dinheiro e disse que “campeão” era um nome muito bonito e que ela ficaria com ele. Me deu uma alegria e uma tristeza. A moça percebeu e disse que eu poderia vim ver o campeão quando eu quisesse. Voltei para casa morrendo de fome, antes fui até casa do seu Agenor. “Olá dona Hilda, o seu marido está? Dona Hilda me olhou com desdém e gritou “Agenor, o filho do pinguço caloteiro tá aqui” Então veio o seu Agenor. “O que foi guri?”

Eu botei as mãos no bolso, tirei algumas notas e dei para o seu Agenor. Perguntei se aquele dinheiro pagava o que o meu pai devia, seu Agenor contou o dinheiro e disse que pagava, então perguntei se o meu pai ainda era caloteiro, ele respondeu que não. Saí sem dizer mais nada. Depois fui à padaria comprar um sonho com o dinheiro que sobrou, enquanto comia eu pensava que não podia haver nome mais bonito para um doce tão gostoso. Sentei na beira da calçada e fiquei pensando naquela moça bonita que acreditou na história do meu cavalo ser campeão. Nesse mesmo dia passei em casa e peguei o D. Quixote só para tê-lo junto de mim e fui procurar o doutor Fagundes no consultório. Ele estava atendendo e eu fiquei numa cadeira muito confortável balançado minha pernas. Dali a pouco o Dr. Fagundes abriu a porta e deu aquele sorriso que eu tanto gostava. Ele pediu para eu entrar na sala dele. Depois perguntou se eu estava bem, se não estava doente. Respondi que não. Mas eu queria mesmo dizer que tinha uma tristeza no coração porque minha mãe morreu de doidice e meu pai tinha se enforcado no banheiro, mas eu pensei em não dizer nada porque as pessoas tristes não são doentes, são só tristes. O Dr. Fagundes perguntou então o que é que eu queria. Eu disse num impulso que estava com saudades dele. Dr. Fagundes sorriu novamente. Disse a ele tudo que tinha acontecido; do meu pai enforcado no banheiro. Ele me olhou triste. Depois não me agüentei e disse mais, disse que se Deus tivesse me dado chance de escolher um pai antes de nascer, eu teria escolhido ele. Eu não tinha me dado conta, mas o Dr. Fagundes estava com os olhos cheios d’água.

Depois disse a ele que eu tinha vendido o Campeão para pagar o seu Agenor porque eu queria que ele parasse de chamar meu pai de caloteiro e de cuspir no túmulo dele. O Dr. Fagundes disse que eu era um menino muito bom. Em seguida, ele pediu para esperá-lo porque tinha mais um paciente, mas que depois ia me levar para tomar um sorvete e eu perguntei senão podia ser de chocolate e ele disse que sim. E quando eu saí senti uma vontade de abraçá-lo, mas não fiz. Fiquei na sala de espera balançando minhas pernas e folheando o Dom Quixote.

segunda-feira, 14 de março de 2011

Palavras Guardadas - Parte 3

Parte 1
Há muitas maneiras de se guardar um passado. Cada um guarda de um jeito. Tem gente que guarda fotos, jóias de família, roupas. Eu não, eu guardo palavras, não em palavras escritas mas em palavras vivas, dessas que a gente adormece no corpo para acordá-las quando precisamos viver um passado. Não vou mentir, também tenho essas coisas de objetos, mas é diferente, pois eles não servem para serem guardados. Os objetos servem só para gente lembrar, não para viver. Agora, o que eu posso lhe adiantar é que meus acontecimentos não mudaram o mundo. Se ao senhor interessa uma vivência assim; sem importância; posso então dizer que minha vida não teve fortunas. Talvez minha travessia seja apagada depois que lhe contar esta história, pois são estas palavras guardadas é que sustentam minhas pernas. Minha travessia pela a vida é nula. Talvez possa, assim, o senhor, explicar uma vida que nem a minha. Saiba me dizer também para que serve o viver se morte sempre vem. Quando eu morrer, não precisarei deixar cartas explicando meus dias, minha pele diz tudo, meu rosto é minha identidade. Vê, ali, minha mulher no retrato? Pois ela foi antes de mim. O senhor acha que ela precisa de uma carta explicando alguma coisa? A história de uma pessoa cabe nas marcas da pele. Cada vez que um vento bate no rosto, a gente aprende a guardar um passado. Um dia Deus levou minha mulher, pois Deus é assim; nos abençoa uma vida e depois nos arranca para mais adiante plantar de novo dentro da gente, mas Ele planta diferente. Planta a dor, planta saudade. Deus é uma invasão que a gente consente pra se acostumar com a tristeza. A tristeza é um jeito conformado de sentir a dor. Por isso que eu prefiro o desespero. Ora, o desespero ainda é um grito contra o irremediável, ainda é um protesto. Desespero é coragem.
Parte 2

Mas não se engane, pois a época do meu desespero já passou. A coragem desistiu de mim. Sou um homem conformado. Espero o tempo. Depois que me aposentei passei contar o tempo diferente, pois quando se é jovem contamos o quanto já vivemos, agora só conto o quanto me resta de vida. Eu não acredito mais em Deus. Também não sou pagão, sou religioso. No entanto, não acredito em Deus, mas eu o amo. O senhor compreende isso? Com toda a minha força, eu digo que o amo. Seria capaz de entregar minha vida a Ele. Deus é nome que a gente empresta para o que não sabemos. Toda a morte é um pedaço de Deus, eu sei e aceito. Deus não envelhece por isso não conhece a dor. Só os velhos sofrem com a falta de eternidade. Talvez quando o senhor voltar aqui novamente já não vou estar. A velhice é castigo, pois somos privados de tudo: Primeiro começa com uma canseira nos pulmões, uma fraqueza nas pernas. E num outro dia você vai ao banheiro e percebe que tem dificuldade de urinar. Num outro dia a visão falha de vez e enxergamos mal para sempre. Num outro dia temos que parar de beber, de comer doces. Num outro as mulheres desistem de nós. Em seguida, começa o aprendizado das humilhações. Envelhecer faz a gente engolir desaforos. A humilhação da aposentadoria, falo de toda essa papelada que o governo pede e que nunca dá certo. O tempo avança, até que um dia, depois de anos na fila, entre o sol e a chuva a gente consegue receber o nosso salário. É por tudo isso que, às vezes, eu não concordo com a vida. Discordo dela até o fim. Ninguém escapa do peso de viver. Agora, preste atenção: essa minha história não é para você, não é para ninguém, mas é para todos. Pois, mesmo que o senhor não estivesse aí me escutando, essa minha vida de palavras tinha de existir, o senhor entende? Tinha de existir. E antes que o senhor pergunte o motivo das minhas palavras tristes, eu vou lhe adiantando: Amei errado.
Parte 3

Mas, antes mesmo que o senhor me julgue eu lhe pergunto uma coisa: existe um amar certo? Fui injusto. Mas existe justiça no amor? Às vezes, paro meu olho naquele relógio... É, eu sei, está parado, não funciona. Não tem mais jeito. Foi o tempo quem matou ele. Um relógio é sempre uma ilusão, pois ele acha que pode mandar no tempo, mas lhe garanto: o tempo é sempre maior que um ponteiro. No entanto, se o senhor se achegar mais pertinho dele, vai notar que ele parou de propósito, por pura teimosia. Parou porque se recusou a contar... É danado este relógio. Na verdade, foi o tempo que desistiu dele. Este relógio ilude os atrasos. Ele aprendeu a doer o tempo e a medir o eterno. Sim, o eterno é medível. O eterno cabe na infância de Deus. Parado, assim, foi o jeito que ele encontrou de vergar as eras. Foi minha mulher quem me deu este relógio. Nunca vou permitir que toquem nele, pois ele é só o que me resta. Na verdade, não me importo com este relógio. Não gosto de guardar objetos, como já disse, porém o que me importa, é o protesto dele. Sei que isso pode parecer loucura, mas na velhice a gente não precisa mais se preocupar com a lucidez, na velhice a gente desaprende a mentir, a verdade fica mais próxima. Preciso dizer que quando minha mulher morreu, sequei por dentro, pois chorei tudo que havia em mim. Conheci o deserto e tive de endurecer. Agora não sei mais chorar. Por isso me acostumei a inventar lágrimas, embora eu saiba que lágrimas a gente não inventa, a gente nasce.

Agora, se o senhor me permite, eu preciso lhe contar como foi que conheci minha mulher. Isso é para o senhor entender bem porque gosto de guardar palavras.

quinta-feira, 10 de março de 2011

Mergulho em mar aberto

Eu tinha doze anos quando vi o mar pela primeira vez. Embora tenha nascido no Rio de Janeiro e sido criado em Copacabana, vi o mar tardiamente. Além disso, tive o privilégio de estudar numa escola que ficava de frente para o mar. Desde muito pequeno minha mãe sempre me levava à praia. Entretanto, eu não via o mar. O mar, até então, era para mim, um lugar para brincar, um lugar onde eu exercia minha infância, onde águas serviam para aliviar o calor. No mar, eu imaginava submarinos. Eu era o peixe e o pirata, o marinheiro e o tubarão.
Mas eu não sabia ver o mar.
O sol naquela dia era forte, eu havia matado aula para ir à praia. Fui sozinho. Era cedo, a praia estava um pouco vazia. Tirei a camiseta, o tênis, as meias e entrei correndo no mar. Gostava de fazer isso. Entrar assim, de repente, até perder o fôlego. Até ficar cansado de alegria. Fui vencendo as ondas agitadas. Nunca fui um bom nadador. Mesmo assim, avancei até depois da arrebentação. Lá as águas são tranqüilas. Mas logo em seguida, uma onda forte, dessas que nos atingem duas ou três vezes na vida, me pegou de surpresa. A onda me fez ir ao fundo. Quando voltei á tona, comecei a engolir água. Enquanto tentava tomar impulso para nadar, uma outra onda forte me jogou para o fundo novamente. Cada vez mais eu me afastava da praia, comecei a engolir mais água, me faltava ar. Fiquei cansando. Entrei em desespero, meu corpo parecia ter desistido de continuar. De repente as ondas cessaram. Um silêncio estranho tomou conta de mim. Eu não tinha mais forças para nadar. Apenas insistia com o rosto para fora em busca de mais ar. No entanto, meus músculos estavam dormentes. E lentamente vi o azul do céu fenecer.
Fui resgatado por um surfista. Eu estava consciente. Sai do mar caminhando, tossindo, com náuseas. Sentei na beira da praia. Algumas pessoas ficaram ao meu redor, perguntando se eu estava bem. Onde estavam meus pais. Eu disse que estava tudo bem e que minha mãe já estava chegando. Depois me levantei. Caminhei um pouco, minhas pernas tremiam. Eu chorava um pouco, soluçava. Sentei-me novamente. Olhei firme para o horizonte e foi então que vi o mar pela primeira vez.
Demorei doze anos para que o mar me fosse apresentado. E como um náufrago compreendi que o mar era um abismo, que o mar era um abrigo de precipícios. Um assombro líquido. Território derradeiro das angústias. Na verdade, compreendi que eu estava diante de uma metáfora e que toda a síntese da nossa condição passava pelo mar. Saber de minha pequenez diante daquelas águas, saber de minha fragilidade, me fazia sentir uma espécie de humilhação. Porque toda proximidade da morte é uma ofensa.
Lembro de ter ficado um bom tempo com olhos estendidos sobre o horizonte. Envelheci dez anos naquele dia. Naquela manhã deixei minha infância no mar. Fui obrigado a olhar para ele como um homem. Depois daquele dia, toda vez que ia à praia era como se eu entrasse no mar pela primeira vez. Por diversas vezes tentei continuar minhas brincadeiras de submarino, de piratas. Mas fui envelhecendo com o mar. E não havia mais o que fazer.
Quando encontro dificuldades para escrever, lembro desse dia. Porque preciso sempre me lembrar que na escrita, assim como no mar, temos de enfrentar a eternidade ou a ausência dela. É preciso preservar o fôlego dos náufragos. Porque só se entra no mar com um certo alumbramento nos olhos. O mar é difícil, como a escrita. Escrever é sempre um mergulho em mar aberto.

domingo, 27 de fevereiro de 2011

Segunda parte do conto "Palavras guardadas"

Primeira parte:

Há muitas maneiras de se guardar um passado. Cada um guarda de um jeito. Tem gente que guarda fotos, jóias de família, roupas. Eu não, eu guardo palavras, não em palavras escritas mas em palavras vivas, dessas que a gente adormece no corpo para acordá-las quando precisamos viver um passado. Não vou mentir, também tenho essas coisas de objetos, mas é diferente pois eles não servem para serem guardados. Os objetos servem só para gente lembrar, não para viver. Agora, o que eu posso lhe adiantar é que meus acontecimentos não mudaram o mundo Se ao senhor interessa uma vivência assim; sem importância; posso então dizer que minha vida não teve fortunas. Talvez minha travessia seja apagada depois que lhe contar esta história, pois são estas palavras guardadas é que sustentam minhas pernas. Minha travessia pela a vida é nula. Talvez possa, assim, o senhor, explicar uma vida que nem a minha. Saiba me dizer também para que serve o viver se morte sempre vem. Quando eu morrer, não precisarei deixar cartas explicando meus dias, minha pele diz tudo, meu rosto é minha identidade. Vê, ali, minha mulher no retrato? Pois ela foi antes de mim. O senhor acha que ela precisa de uma carta explicando alguma coisa? A história de uma pessoa cabe nas marcas da pele. Cada vez que um vento bate no rosto, a gente aprende a guardar um passado. Um dia Deus levou minha mulher, pois Deus é assim; nos abençoa uma vida e depois nos arranca para mais adiante plantar de novo dentro da gente, mas Ele planta diferente. Planta a dor, planta saudade. Deus é uma invasão que a gente consente pra se acostumar com a tristeza. A tristeza é um jeito conformado de sentir a dor. Por isso que eu prefiro o desespero. Ora, o desespero ainda é um grito contra o irremediável, ainda é um protesto. Desespero é coragem.
Segunda parte:
Mas não se engane, pois a época do meu desespero já passou. A coragem desistiu de mim. Sou um homem conformado. Espero o tempo. Depois que me aposentei passei contar o tempo diferente, pois quando se é jovem contamos o quanto já vivemos, agora só conto o quanto me resta de vida. Eu não acredito mais em Deus. Também não sou pagão, sou religioso. No entanto, não acredito em Deus, mas eu o amo. O senhor compreende isso? Com toda a minha força, eu digo que o amo. Seria capaz de entregar minha vida a Ele. Deus é nome que a gente empresta para o que não sabemos. Toda a morte é um pedaço de Deus, eu sei e aceito. Deus não envelhece por isso não conhece a dor. Só os velhos sofrem com a falta de eternidade. Talvez quando o senhor voltar aqui novamente já não vou estar. A velhice é castigo, pois somos privados de tudo: Primeiro começa com uma canseira nos pulmões, uma fraqueza nas pernas. E num outro dia você vai ao banheiro e percebe que tem dificuldade de urinar. Num outro dia a visão falha de vez e enxergamos mal para sempre. Num outro dia temos que parar de beber, de comer doces. Num outro as mulheres desistem de nós. Em seguida, começa o aprendizado das humilhações. Envelhecer faz a gente engolir desaforos. A humilhação da aposentadoria, falo de toda essa papelada que o governo pede e que nunca dá certo. O tempo avança, até que um dia, depois de anos na fila, entre o sol e a chuva a gente consegue receber o nosso salário. É por tudo isso que, às vezes, eu não concordo com a vida. Discordo dela até o fim. Ninguém escapa do peso de viver. Agora, preste atenção: essa minha história não é para você, não é para ninguém, mas é para todos. Pois, mesmo que o senhor não estivesse aí me escutando, essa minha vida de palavras tinha de existir, o senhor entende? Tinha de existir. E antes que o senhor pergunte o motivo das minhas palavras tristes, eu vou lhe adiantando: Amei errado.