quinta-feira, 26 de maio de 2011

A minha estrela da manhã

Esta manhã acordei lúcido como quem passou a noite num deserto.

Minha febre alta, devido à gripe, me fez sofrer alucinações pela madrugada. Senti-me com se estivesse dentro do conto “Sur” do Borges.

Acordei lúcido porque as manhãs são sempre lúcidas. A cada dia que passa, percebo que a lucidez pode ser um dom ou talvez um castigo, porque quando nos tornamos lúcidos é preciso saber que isso é para sempre.

A partir daí, a vida não perdoa mais nossa desatenção. Portanto, é necessário aprender a tristeza desde cedo. Por outro lado, creio que não há um tempo particular para conhecer a dor, justamente porque a vida não escolhe idade quando quer doer.

Esta manhã, ficou mais claro para mim que só a dor e a lucidez nos tornam mais atentos para a vida. A aprendizagem do desgosto nos prepara pra sermos lúcidos. Desde cedo conheci o sofrimento. Eu não sabia, mas conhecer a dor precocemente era um modo de não ser pego de surpresa. Pois quando surgem aquelas situações limites em que é preciso optar entre sucumbir ou endurecer, a dor e a lucidez te mandam à merda e você só pode endurecer porque sucumbir é pouco quando se pretende algo na vida.

Esta manhã lembrei que quando completei 13 anos, acordei estranhamente. Quero dizer que quando acordei parecia que as cores haviam desbotado, todas as cores me pareceram opacas. Minha mãe me levou ao médico, acharam que eu tinha alguma espécie de daltonismo. Após os exames, o médico disse que eu não tinha nada. Anos mais tarde compreendi que eu havia sido, na verdade, acometido pela dor da lucidez. Desde então minhas paisagens beiram ao cinza, embora eu saiba distinguir as cores, há sempre algo de triste nas coisas que vejo.

Esta manhã compreendi que a lucidez precisa das palavras. Toda a tragédia humana passa pela palavra ou pelo silêncio. A gente só conhece a lucidez quando entendemos luz da manhã, creio que nenhuma outra luz possa ser tão lúcida. As manhãs não foram feita para crer, as manhãs foram feitas para desconfiar.

As missas, as orações, as preces não deveriam ser feitas pela manhã. Não se acredita em Deus pela manhã. Só a noite é capaz de guardar segredos. Todos os mistérios são engendrados na força da noite. A manhã não guarda segredos, porque ela os revela. Nenhuma ressaca acontece durante a madrugada. A luz da manhã é filosófica.

Ultimamente, tenho lutado para ser um homem das manhãs. Anseio pelo noite, anseio pelos sonhos e também pelos assombros dos meus pesadelos. Mas é pela manhã que retorno a mim. É pela manhã que meus sentidos se desvelam e se refazem.

domingo, 3 de abril de 2011

A maldade tem bons sentimentos

Em algum lugar Rimbaud teria dito que o amor não tem bons sentimentos. A frase é também título do excelente livro do escritor Raimundo Carrero. Aproveito a idéia para dizer que a maldade também tem bons sentimentos. Tenho pensado na maldade como algo a ser cultivado, assim como a bondade. Explico-me. Cada vez mais acredito que somos pessoas más por natureza. Sempre desconfiei de Rosseau com aquela balela colonialista do mito do bom selvagem. A sociedade não corrompe ninguém. Já nascemos corrompidos. E isso nada tem a ver com o pecado original católico. Isso tem a ver com aquilo que Edgar Allan Poe discute no "demônio da pervesidade". Tem a ver com nossa natureza que pende para o egoísmo da sobrevivência. Sobreviver nos torna egoístas. Nascemos más. As crianças são más. E ao contrário do que se pensa é a bondade que é um sentimento lento e difícil. Durante 34 anos fui bombardeado por pessoas más me dizendo; “Guri fique onde você está”, “Te contenta com isso”. “Não adianta, tu não vais conseguir.” A duras penas percebi, portanto, que não havia nada de errado com as pessoas. O que estava errado era a vida. Sim, culpo a vida por me dar esse olhar patético de bondade sobre as pessoas. Sempre acredito que as pessoas que vou conhecendo são boas. No entanto, sou surpreendido com atos de maldade, mesquinharias. Mas não guardo rancores. Não lamento. Não tenho nada a ver com as lamentações. É por isso que escrevo. Escrevo pelo único motivo que vale apena escrever: para me vingar da vida. Para mim, a vida deve satisfações à literatura. Meus escritos são um acerto de contas com a vida. Entretanto, para cobrar dela, é preciso cultivar um pouco de maldade. É dessa maldade que estou falando. Dessa que nos protege. A maldade que nos move a erguer um ímpeto sobre a vida, e nos permite discordar dela. Como um ato divino. Ser Deus em nós mesmos. Desde que o mundo é mundo, Deus vêm praticando suas maldades. Deus envelhece na violência dos leões. Tenho esse Deus dentro de mim. Deus sábio. Não estou fazendo nenhum elogio à maldade. Estou apenas cobrando o direito de uma explicação. A vida tem de se explicar. Uma temporada no inferno não faz mal a ninguém. Por isso insisto: A maldade tem bons sentimentos. O mal purifica. Dostoiéviski que o diga. O amor é doloroso, por isso não tem bons sentimentos. Como a vida. Entre a maldade e bondade prefiro os dois.

domingo, 27 de março de 2011

Cavalos não choram

Minha mãe morreu quando eu tinha 10 anos. Morreu de doidice. Lembro do meu pai fumando desgovernado e nervoso no dia do enterro. Ela teve uma doença que a fazia esquecer das coisas, disseram que não havia cura. Primeiro ela começou a esquecer onde ficavam os lugares, depois esqueceu o nome dos parentes, até que um dia esqueceu dela mesma. Certa vez, fiquei com medo de que ela esquecesse de mim, mas isso não aconteceu porque uma mãe jamais esquece um filho.

Alguns meses antes dela ficar doente apareceu em nossa porta um vendedor de livros. O moço tinha de tudo: dicionários, receitas, medicina familiar e alguma literatura. Em nossa casa havia poucos livros. Minha mãe escolheu um livro grande com um cavaleiro desenhado na capa. Antes de comprá-lo, ela ficou passando a ponta dos dedos nele todo. Em seguida, perguntou ao vendedor quanto era, e a julgar pela cara de minha mãe parecia ser muito caro. Mas nesse momento ela me olhou tão atenta e eu gostava tanto disso porque era o jeito dela de dizer que me amava. Aí ela foi até o quarto e pegou o dinheiro que ela tinha guardado escondido do meu pai graças as faxinas que ela fazia na vizinhança. Passou a mão mais uma vez na capa, pois, mesmo tendo lido pouco na vida minha mãe achava que um livro sempre carregava alguma coisa importante. O livro era tão grande e tinha tantas páginas que eu nunca pensava que uma pessoa poderia ler ele todo. Depois que minha mãe morreu, não me desgrudei mais do livro. Eu ainda não sabia as letras, pois ficava ajudando meu pai nos serviços e não havia tempo para estudos, mas eu fingia que lia, eu passava os dedos pelas páginas, imaginava uma história em que as mães nunca morrem e a gente nunca chora, porque não existem dores.

Meu pai bebia, e as pessoas quando bebem parecem ter um cheiro diferente, elas cheiram a qualquer coisa de triste. Comecei a trabalhar com meu pai aos oito anos de idade. Meu pai tinha uma carroça e um cavalo chamado Campeão. Nosso trabalho era carregar coisas. A gente fazia a mudança das pessoas, ou então levava compras ou móveis para elas. Às vezes era divertido, embora eu achasse esquisito chamar de trabalho aquele negócio de carregar coisas pra lá e pra cá. Mas eu gostava mesmo quando passávamos na rua onde havia uma casa muito grande. Nessa rua havia uma moça morena muito bonita que ficava na janela. Ela era mais velha do que eu, porém quando eu passava ela sempre sorria para mim e eu ficava pensando que quando crescesse ia querer viver sempre ao lado de um sorriso como aquele. Depois da morte de minha mãe, meu pai começou a beber mais, tinha dias que eu ficava sem comer porque eu ainda não sabia fazer comida e meu pai não queria cozinhar. Às vezes, faltava pão e quando a fome era grande, eu reclamava. Meu pai com aquele cheiro triste dele, colocava as mãos nos bolsos e me dava umas moedas. Dizia que era para eu me virar com aquilo. Outras vezes, meu pai parecia feliz e me levava com ele para o bar, depois mandava que eu molhasse minha boca na espuma da cerveja para que eu fosse me acostumando a tomar o seu lugar como chefe da família, porque a tua mãe já morreu, daqui a pouco sou eu, e a vida é assim guri, a vida é assim. Depois ele sorria para os amigos que estavam na mesa como quem diz que o filho de nove anos já era um homem. A alegria de meu pai, nessas ocasiões, durava bem pouco. Ia até a quarta cerveja. Depois ele baixava os olhos, se calava e esquecia de mim.

Eu gostava quando chovia, não gostava dos trovões pois eu achava que Deus não precisava assustar as pessoas com tanto barulho só para avisar que vai chover. Mesmo o nosso telhado que estava quebrado e quase já não fazia diferença nenhuma chover na rua ou dentro de casa, eu gostava da chuva, gostava do barulho dos pingos, dos pingos batendo no vidro da janela e escorregando, assim, um atrás do outro. Que nem um rosto chorando. Nossa casa estava bem velha. Quando minha mãe era viva, meu pai ainda fazia alguns reparos. Depois não fazia mais nada. Parecia que tinha desistido da vida, pois há pessoas que já não querem mais viver, mas também não querem morrer, acho que assim era o meu pai. A minha cama não era das piores, era macia e quente. O que me irritava, mesmo, eram os barulhinhos que eu escutava embaixo dela. Eu sabia que eram os camundongos que ficavam roendo algum resto de comida que eles encontravam na cozinha e vinham justamente comer em baixo da minha cama. Um dia decidi pegar um deles, montei uma arapuca com uma caixa de sapato do meu pai, juntei um graveto e enrolei um pedacinho de queijo nele. Deixei a caixa apoiada no graveto de um jeito que qualquer toque faria a caixa cair em cima do camundongo. Dito e feito. Peguei ele. Fiz uns furinhos na caixa para poder vê-lo, era pequeno e agressivo, pois ele dava saltos dentro da caixa.

O camundongo passou a me fazer companhia, eu colocava a caixa em cima da cabeceira. Duas vezes por dia eu levava um pedacinho de queijo ou de pão para ele não morrer, depois fiz um buraquinho maior e coloquei água. Quando eu ficava muito triste, eu pegava o livro que minha mãe tinha me dado, segurava ele com força, depois abria em qualquer página e fingia uma história para o camundongo. Inventava ilusões. Volta e meia meu pai me pegava mentindo leituras. Ele me olhava e dizia que eu estava ficando doido igual a minha mãe. Eu fazia silêncio. Esperava ele sair e depois eu chorava.

Num outro dia meu pai encontrou o camundongo na minha caixa, ficou nervoso, disse que eu estava doente e me levou ao médico. Era o doutor Fagundes, o mesmo que cuidou de minha mãe até ela morrer. Foi ele quem descobriu a doença dela. Ele sempre era muito bom comigo. As pessoas mais velhas têm a mania de mentir para as crianças dizendo que estão prestando atenção nelas, mas é mentira. O Dr. Fagundes não era assim, quando ia com minha mãe visitá-lo, ele me olhava de verdade e quando perguntava como eu estava, ele realmente queria saber. O Dr. Fagundes era careca e tinha um bigode que quase tomava conta de todo o seu rosto, eu sempre achei muito engraçado as pessoas carecas.

“Este guri está louco, Dr. Fagundes, endoideceu” dizia meu pai “veja o senhor que agora ele deu de andar com ratos dentro de uma caixa, quando não é isso, fica pra lá e pra cá com um livro velho e falando sozinho”. O Dr. Fagundes nos olhava sereno, um olhar de quem já sabe alguma coisa sobre a vida. “Olhe seu José, seu filho perdeu a mãe há pouco tempo, ainda está se acostumando, é difícil para ele e para o senhor. Digamos que a caixa com ratos é uma coisa meio esquisita mesmo, mas o livro... o senhor devia até se orgulhar” “Ora, se orgulhar do quê? Ele não sabe ler Dr. É tudo inventado por ele”. Nesse momento o Dr. Fagundes olhou para mim e sorriu, e era um sorriso tão terno e tão atencioso que eu quase esqueci da minha tristeza. “Seu José, o Juvêncio precisa de uma escola, precisa aprender a ler” “Mas e como é que eu fico com o serviço, Dr.?” “Talvez o senhor devesse encontrar um outro ajudante. O seu filho precisa aprender a ler, ir para escola, se instruir. Assim, no futuro, ele poderá até lhe ajudar com os documentos da sua aposentadoria”

Meu pai gostava dessa palavra “aposentadoria”, ele se achava um injustiçado, “uns com pouco e o outros com tanto” era uma de suas frases preferidas. Acho que foi a primeira vez que meu pai achou um motivo para alguém estudar. “Ele tem comido direito?” continuou o Dr. “É claro, o Dr. acha que não sei cuidar do meu filho?” “Não, não é isso, é que devemos ficar sempre de olho nas crianças. O senhor me responda mais uma coisa; como ele tem reagido a falta da mãe? O seu filho tem chorado?” “Não, ele nunca chora, Dr., este guri parece uma parede, ele não chora, não ri, não fala. Acho que ele vai ficar igual a mãe dele” Quando ele dizia isso eu sentia aquela raiva de morte do meu pai, porque ele não sabia nada de mim, não sabia que eu chorava, que chorava no escuro, escondido, pois aprendi que chorar é uma coisa sagrada, requer um tempo e um lugar sagrado. O meu lugar era a solidão. Meu pai ainda um pouco contrariado me deixou ir para escola, seguindo o conselho do Dr. Fagundes já que eu poderia ajudá-lo nos documentos de sua aposentadoria. A minha primeira professora foi a D. Ernestina. Já era uma senhora. D. Ernestina era gorda e usava uns óculos grandes que deixavam ela mais feia, mas quando a gente queria agradar a professora, nós dizíamos que os óculos faziam ela ficar mais jovem. Alguns velhos são bobos pois gostam de ouvir que não aparentam a idade que têm, querem ser jovens até na velhice. A nossa sala de aula era uma casinha de madeira e tinha lugar para vinte alunos, mas isso nunca acontecia, pois sempre tinha mais, e éramos obrigados a dividir a cadeira e a mesa, ou então tínhamos que sentar no chão mesmo. A escolinha ficava no terreno do seu Graciliano. A gente achava que ele era um homem bom, mas depois descobri que ele fez a escolinha em troca de favores políticos. Pois ele não queria nem saber se a gente estava aprendendo alguma coisa, só queria manter a imagem de homem generoso, que está preocupado com o progresso do país e que as crianças são o futuro. E no fim do discurso dele a gente tinha que aplaudir. D. Ernestina tinha um jeito todo dela de dar aula. Ela falava muito, dizia coisas da vida dela, da infância, que, para nós, eram coisas de muitos séculos atrás. Dizia que no seu tempo aprender a ler não tinha toda essa mordomia, não. De ter uma escola pertinho de casa e de ter uma professora boa que nem ela.

Não é de uma hora para outra que aprendemos ler, é aos pedaços, mas eu tinha um objetivo que me incentivava: queria aprender a ler logo para poder saber afinal que livro era aquele que a minha mãe havia comprado. Eu tinha pressa, não queria mais ter que adivinhar a escrita, eu queria saber as letras de verdade. Um dia eu não agüentei esperar, levei o livro para a aula, aquele livro pesado e grosso. Quando cheguei com o livro na frente da D Ernestina, ela o pegou, folheou e depois perguntou o que é que eu fazia com aquele livro. Expliquei que tinha trazido de casa, pois minha mãe tinha morrido de doidice e quando era viva estava sempre com ele, e que eu trouxe para que ela lesse para nós, pois eu não queria mais adivinhar as letras daquele livro, eu queria saber ele. Nesse momento D. Ernestina encheu os olhos d’água. Eu perguntei qual era o nome do livro, ela disse que era Dom Quixote. D. Ernestina nos explicou que era a história de um cavaleiro muito atrapalhado, mas muito corajoso que acreditava nos livros e passou a ver o mundo diferente, sonhava um mundo mais bonito onde as pessoas eram boas, educadas, honrosas e felizes. E eu juro que eu senti uma vontade danada de chorar. E a partir daquele dia eu me esforcei muito para aprender a ler direito e descobrir quem era aquele cavaleiro que acreditava nos livros.

No dia em que eu ia contar a história do Dom Quixote para o meu pai eu entrei entusiasmado em casa gritando por ele, eu nem me importava se ele tivesse com aquele cheiro triste das pessoas que bebem. Fui no quarto e nada. Chamei por ele no corredor, cheguei a pensar que não estivesse em casa. Bati na porta do banheiro. Esperei um pouco, e nada. Fui abrindo a porta devagar até ver meu pai pendurado com uma corda enrolada no pescoço. O corpo dele balançava igual ao pêndulo de um relógio. Dei um grito forte e triste. Larguei o Dom Quixote no chão, e corri até ele. Bati em suas pernas, mas nada adiantou. A vida, às vezes, não perdoa atrasos. Depois que meu pai morreu fiquei desnorteado. Não tinha a quem recorrer. Foram os meus tios, que também bebiam e tinham lá o cheiro tristes deles, que cuidaram do enterro. Mas esqueceram de mim. Ninguém veio perguntar o que eu ia fazer dali para frente. Vieram umas vizinhas que olharam nossa casa caindo aos pedaços. Me lançaram aquele olhar indiferente. Depois descobri que ninguém ali gostava do meu pai porque além de beber e arranjar brigas com os outros, ele devia dinheiro para o nosso vizinho Agenor. No dia que o meu pai foi enterrado escutei seu Agenor resmungando que agora quem é que ia pagar as dívidas do meu pai, aquele pinguço caloteiro, depois cuspiu no túmulo dele e foi embora. Fui para casa, dormi sozinho aquela noite, sentia falta do meu pai, mas eu não chorava. Vai ver é porque a dor que eu sentia era tão grande que não podia caber num choro.

No dia seguinte comecei a sentir fome, precisava arranjar comida. Foi então que resolvi vender o campeão, na verdade este nome era um deboche do meu pai, porque aquele cavalo era um perdedor, como o meu pai gostava de dizer. Então eu sai pelas ruas oferecendo o campeão, mas eu não queria vender para qualquer pessoa porque o campeão não era qualquer cavalo. Então lembrei de ir bater na porta daquela moça bonita que sorria para mim. Toquei a campainha e fiquei esperando, aí ela apareceu sorrindo como sempre. “A senhora quer comprar um cavalo?” “E por que é que eu compraria um cavalo” disse ela sorrindo Não sabia o que dizer. “Qual é o nome dele?” Ela perguntou. “Campeão” “Campeão? Que nome bonito, hein?” Ela disse sorrindo novamente, “ e porque esse nome?” Eu poderia ter dito que foi meu pai que botou esse nome só para fazer troça do campeão, mas fiquei com vergonha. “É porque ele é campeão” eu disse “De corrida?” “Não” “Ora, de que, então?” “Ele é um cavalo muito feliz” “Não entendi” ela disse paciente. “Ele é campeão porque ele sempre ganhou da tristeza” “E como é que você sabe disso?” “É porque eu nunca vi ele chorar” “Ora, mas cavalos não choram” “Vai ver porque todos os cavalos são felizes”. Eu disse A moça colocou a mão no meu rosto, depois entrou e em seguida voltou com um bolo de dinheiro e disse que “campeão” era um nome muito bonito e que ela ficaria com ele. Me deu uma alegria e uma tristeza. A moça percebeu e disse que eu poderia vim ver o campeão quando eu quisesse. Voltei para casa morrendo de fome, antes fui até casa do seu Agenor. “Olá dona Hilda, o seu marido está? Dona Hilda me olhou com desdém e gritou “Agenor, o filho do pinguço caloteiro tá aqui” Então veio o seu Agenor. “O que foi guri?”

Eu botei as mãos no bolso, tirei algumas notas e dei para o seu Agenor. Perguntei se aquele dinheiro pagava o que o meu pai devia, seu Agenor contou o dinheiro e disse que pagava, então perguntei se o meu pai ainda era caloteiro, ele respondeu que não. Saí sem dizer mais nada. Depois fui à padaria comprar um sonho com o dinheiro que sobrou, enquanto comia eu pensava que não podia haver nome mais bonito para um doce tão gostoso. Sentei na beira da calçada e fiquei pensando naquela moça bonita que acreditou na história do meu cavalo ser campeão. Nesse mesmo dia passei em casa e peguei o D. Quixote só para tê-lo junto de mim e fui procurar o doutor Fagundes no consultório. Ele estava atendendo e eu fiquei numa cadeira muito confortável balançado minha pernas. Dali a pouco o Dr. Fagundes abriu a porta e deu aquele sorriso que eu tanto gostava. Ele pediu para eu entrar na sala dele. Depois perguntou se eu estava bem, se não estava doente. Respondi que não. Mas eu queria mesmo dizer que tinha uma tristeza no coração porque minha mãe morreu de doidice e meu pai tinha se enforcado no banheiro, mas eu pensei em não dizer nada porque as pessoas tristes não são doentes, são só tristes. O Dr. Fagundes perguntou então o que é que eu queria. Eu disse num impulso que estava com saudades dele. Dr. Fagundes sorriu novamente. Disse a ele tudo que tinha acontecido; do meu pai enforcado no banheiro. Ele me olhou triste. Depois não me agüentei e disse mais, disse que se Deus tivesse me dado chance de escolher um pai antes de nascer, eu teria escolhido ele. Eu não tinha me dado conta, mas o Dr. Fagundes estava com os olhos cheios d’água.

Depois disse a ele que eu tinha vendido o Campeão para pagar o seu Agenor porque eu queria que ele parasse de chamar meu pai de caloteiro e de cuspir no túmulo dele. O Dr. Fagundes disse que eu era um menino muito bom. Em seguida, ele pediu para esperá-lo porque tinha mais um paciente, mas que depois ia me levar para tomar um sorvete e eu perguntei senão podia ser de chocolate e ele disse que sim. E quando eu saí senti uma vontade de abraçá-lo, mas não fiz. Fiquei na sala de espera balançando minhas pernas e folheando o Dom Quixote.

segunda-feira, 14 de março de 2011

Palavras Guardadas - Parte 3

Parte 1
Há muitas maneiras de se guardar um passado. Cada um guarda de um jeito. Tem gente que guarda fotos, jóias de família, roupas. Eu não, eu guardo palavras, não em palavras escritas mas em palavras vivas, dessas que a gente adormece no corpo para acordá-las quando precisamos viver um passado. Não vou mentir, também tenho essas coisas de objetos, mas é diferente, pois eles não servem para serem guardados. Os objetos servem só para gente lembrar, não para viver. Agora, o que eu posso lhe adiantar é que meus acontecimentos não mudaram o mundo. Se ao senhor interessa uma vivência assim; sem importância; posso então dizer que minha vida não teve fortunas. Talvez minha travessia seja apagada depois que lhe contar esta história, pois são estas palavras guardadas é que sustentam minhas pernas. Minha travessia pela a vida é nula. Talvez possa, assim, o senhor, explicar uma vida que nem a minha. Saiba me dizer também para que serve o viver se morte sempre vem. Quando eu morrer, não precisarei deixar cartas explicando meus dias, minha pele diz tudo, meu rosto é minha identidade. Vê, ali, minha mulher no retrato? Pois ela foi antes de mim. O senhor acha que ela precisa de uma carta explicando alguma coisa? A história de uma pessoa cabe nas marcas da pele. Cada vez que um vento bate no rosto, a gente aprende a guardar um passado. Um dia Deus levou minha mulher, pois Deus é assim; nos abençoa uma vida e depois nos arranca para mais adiante plantar de novo dentro da gente, mas Ele planta diferente. Planta a dor, planta saudade. Deus é uma invasão que a gente consente pra se acostumar com a tristeza. A tristeza é um jeito conformado de sentir a dor. Por isso que eu prefiro o desespero. Ora, o desespero ainda é um grito contra o irremediável, ainda é um protesto. Desespero é coragem.
Parte 2

Mas não se engane, pois a época do meu desespero já passou. A coragem desistiu de mim. Sou um homem conformado. Espero o tempo. Depois que me aposentei passei contar o tempo diferente, pois quando se é jovem contamos o quanto já vivemos, agora só conto o quanto me resta de vida. Eu não acredito mais em Deus. Também não sou pagão, sou religioso. No entanto, não acredito em Deus, mas eu o amo. O senhor compreende isso? Com toda a minha força, eu digo que o amo. Seria capaz de entregar minha vida a Ele. Deus é nome que a gente empresta para o que não sabemos. Toda a morte é um pedaço de Deus, eu sei e aceito. Deus não envelhece por isso não conhece a dor. Só os velhos sofrem com a falta de eternidade. Talvez quando o senhor voltar aqui novamente já não vou estar. A velhice é castigo, pois somos privados de tudo: Primeiro começa com uma canseira nos pulmões, uma fraqueza nas pernas. E num outro dia você vai ao banheiro e percebe que tem dificuldade de urinar. Num outro dia a visão falha de vez e enxergamos mal para sempre. Num outro dia temos que parar de beber, de comer doces. Num outro as mulheres desistem de nós. Em seguida, começa o aprendizado das humilhações. Envelhecer faz a gente engolir desaforos. A humilhação da aposentadoria, falo de toda essa papelada que o governo pede e que nunca dá certo. O tempo avança, até que um dia, depois de anos na fila, entre o sol e a chuva a gente consegue receber o nosso salário. É por tudo isso que, às vezes, eu não concordo com a vida. Discordo dela até o fim. Ninguém escapa do peso de viver. Agora, preste atenção: essa minha história não é para você, não é para ninguém, mas é para todos. Pois, mesmo que o senhor não estivesse aí me escutando, essa minha vida de palavras tinha de existir, o senhor entende? Tinha de existir. E antes que o senhor pergunte o motivo das minhas palavras tristes, eu vou lhe adiantando: Amei errado.
Parte 3

Mas, antes mesmo que o senhor me julgue eu lhe pergunto uma coisa: existe um amar certo? Fui injusto. Mas existe justiça no amor? Às vezes, paro meu olho naquele relógio... É, eu sei, está parado, não funciona. Não tem mais jeito. Foi o tempo quem matou ele. Um relógio é sempre uma ilusão, pois ele acha que pode mandar no tempo, mas lhe garanto: o tempo é sempre maior que um ponteiro. No entanto, se o senhor se achegar mais pertinho dele, vai notar que ele parou de propósito, por pura teimosia. Parou porque se recusou a contar... É danado este relógio. Na verdade, foi o tempo que desistiu dele. Este relógio ilude os atrasos. Ele aprendeu a doer o tempo e a medir o eterno. Sim, o eterno é medível. O eterno cabe na infância de Deus. Parado, assim, foi o jeito que ele encontrou de vergar as eras. Foi minha mulher quem me deu este relógio. Nunca vou permitir que toquem nele, pois ele é só o que me resta. Na verdade, não me importo com este relógio. Não gosto de guardar objetos, como já disse, porém o que me importa, é o protesto dele. Sei que isso pode parecer loucura, mas na velhice a gente não precisa mais se preocupar com a lucidez, na velhice a gente desaprende a mentir, a verdade fica mais próxima. Preciso dizer que quando minha mulher morreu, sequei por dentro, pois chorei tudo que havia em mim. Conheci o deserto e tive de endurecer. Agora não sei mais chorar. Por isso me acostumei a inventar lágrimas, embora eu saiba que lágrimas a gente não inventa, a gente nasce.

Agora, se o senhor me permite, eu preciso lhe contar como foi que conheci minha mulher. Isso é para o senhor entender bem porque gosto de guardar palavras.

quinta-feira, 10 de março de 2011

Mergulho em mar aberto

Eu tinha doze anos quando vi o mar pela primeira vez. Embora tenha nascido no Rio de Janeiro e sido criado em Copacabana, vi o mar tardiamente. Além disso, tive o privilégio de estudar numa escola que ficava de frente para o mar. Desde muito pequeno minha mãe sempre me levava à praia. Entretanto, eu não via o mar. O mar, até então, era para mim, um lugar para brincar, um lugar onde eu exercia minha infância, onde águas serviam para aliviar o calor. No mar, eu imaginava submarinos. Eu era o peixe e o pirata, o marinheiro e o tubarão.
Mas eu não sabia ver o mar.
O sol naquela dia era forte, eu havia matado aula para ir à praia. Fui sozinho. Era cedo, a praia estava um pouco vazia. Tirei a camiseta, o tênis, as meias e entrei correndo no mar. Gostava de fazer isso. Entrar assim, de repente, até perder o fôlego. Até ficar cansado de alegria. Fui vencendo as ondas agitadas. Nunca fui um bom nadador. Mesmo assim, avancei até depois da arrebentação. Lá as águas são tranqüilas. Mas logo em seguida, uma onda forte, dessas que nos atingem duas ou três vezes na vida, me pegou de surpresa. A onda me fez ir ao fundo. Quando voltei á tona, comecei a engolir água. Enquanto tentava tomar impulso para nadar, uma outra onda forte me jogou para o fundo novamente. Cada vez mais eu me afastava da praia, comecei a engolir mais água, me faltava ar. Fiquei cansando. Entrei em desespero, meu corpo parecia ter desistido de continuar. De repente as ondas cessaram. Um silêncio estranho tomou conta de mim. Eu não tinha mais forças para nadar. Apenas insistia com o rosto para fora em busca de mais ar. No entanto, meus músculos estavam dormentes. E lentamente vi o azul do céu fenecer.
Fui resgatado por um surfista. Eu estava consciente. Sai do mar caminhando, tossindo, com náuseas. Sentei na beira da praia. Algumas pessoas ficaram ao meu redor, perguntando se eu estava bem. Onde estavam meus pais. Eu disse que estava tudo bem e que minha mãe já estava chegando. Depois me levantei. Caminhei um pouco, minhas pernas tremiam. Eu chorava um pouco, soluçava. Sentei-me novamente. Olhei firme para o horizonte e foi então que vi o mar pela primeira vez.
Demorei doze anos para que o mar me fosse apresentado. E como um náufrago compreendi que o mar era um abismo, que o mar era um abrigo de precipícios. Um assombro líquido. Território derradeiro das angústias. Na verdade, compreendi que eu estava diante de uma metáfora e que toda a síntese da nossa condição passava pelo mar. Saber de minha pequenez diante daquelas águas, saber de minha fragilidade, me fazia sentir uma espécie de humilhação. Porque toda proximidade da morte é uma ofensa.
Lembro de ter ficado um bom tempo com olhos estendidos sobre o horizonte. Envelheci dez anos naquele dia. Naquela manhã deixei minha infância no mar. Fui obrigado a olhar para ele como um homem. Depois daquele dia, toda vez que ia à praia era como se eu entrasse no mar pela primeira vez. Por diversas vezes tentei continuar minhas brincadeiras de submarino, de piratas. Mas fui envelhecendo com o mar. E não havia mais o que fazer.
Quando encontro dificuldades para escrever, lembro desse dia. Porque preciso sempre me lembrar que na escrita, assim como no mar, temos de enfrentar a eternidade ou a ausência dela. É preciso preservar o fôlego dos náufragos. Porque só se entra no mar com um certo alumbramento nos olhos. O mar é difícil, como a escrita. Escrever é sempre um mergulho em mar aberto.

domingo, 27 de fevereiro de 2011

Segunda parte do conto "Palavras guardadas"

Primeira parte:

Há muitas maneiras de se guardar um passado. Cada um guarda de um jeito. Tem gente que guarda fotos, jóias de família, roupas. Eu não, eu guardo palavras, não em palavras escritas mas em palavras vivas, dessas que a gente adormece no corpo para acordá-las quando precisamos viver um passado. Não vou mentir, também tenho essas coisas de objetos, mas é diferente pois eles não servem para serem guardados. Os objetos servem só para gente lembrar, não para viver. Agora, o que eu posso lhe adiantar é que meus acontecimentos não mudaram o mundo Se ao senhor interessa uma vivência assim; sem importância; posso então dizer que minha vida não teve fortunas. Talvez minha travessia seja apagada depois que lhe contar esta história, pois são estas palavras guardadas é que sustentam minhas pernas. Minha travessia pela a vida é nula. Talvez possa, assim, o senhor, explicar uma vida que nem a minha. Saiba me dizer também para que serve o viver se morte sempre vem. Quando eu morrer, não precisarei deixar cartas explicando meus dias, minha pele diz tudo, meu rosto é minha identidade. Vê, ali, minha mulher no retrato? Pois ela foi antes de mim. O senhor acha que ela precisa de uma carta explicando alguma coisa? A história de uma pessoa cabe nas marcas da pele. Cada vez que um vento bate no rosto, a gente aprende a guardar um passado. Um dia Deus levou minha mulher, pois Deus é assim; nos abençoa uma vida e depois nos arranca para mais adiante plantar de novo dentro da gente, mas Ele planta diferente. Planta a dor, planta saudade. Deus é uma invasão que a gente consente pra se acostumar com a tristeza. A tristeza é um jeito conformado de sentir a dor. Por isso que eu prefiro o desespero. Ora, o desespero ainda é um grito contra o irremediável, ainda é um protesto. Desespero é coragem.
Segunda parte:
Mas não se engane, pois a época do meu desespero já passou. A coragem desistiu de mim. Sou um homem conformado. Espero o tempo. Depois que me aposentei passei contar o tempo diferente, pois quando se é jovem contamos o quanto já vivemos, agora só conto o quanto me resta de vida. Eu não acredito mais em Deus. Também não sou pagão, sou religioso. No entanto, não acredito em Deus, mas eu o amo. O senhor compreende isso? Com toda a minha força, eu digo que o amo. Seria capaz de entregar minha vida a Ele. Deus é nome que a gente empresta para o que não sabemos. Toda a morte é um pedaço de Deus, eu sei e aceito. Deus não envelhece por isso não conhece a dor. Só os velhos sofrem com a falta de eternidade. Talvez quando o senhor voltar aqui novamente já não vou estar. A velhice é castigo, pois somos privados de tudo: Primeiro começa com uma canseira nos pulmões, uma fraqueza nas pernas. E num outro dia você vai ao banheiro e percebe que tem dificuldade de urinar. Num outro dia a visão falha de vez e enxergamos mal para sempre. Num outro dia temos que parar de beber, de comer doces. Num outro as mulheres desistem de nós. Em seguida, começa o aprendizado das humilhações. Envelhecer faz a gente engolir desaforos. A humilhação da aposentadoria, falo de toda essa papelada que o governo pede e que nunca dá certo. O tempo avança, até que um dia, depois de anos na fila, entre o sol e a chuva a gente consegue receber o nosso salário. É por tudo isso que, às vezes, eu não concordo com a vida. Discordo dela até o fim. Ninguém escapa do peso de viver. Agora, preste atenção: essa minha história não é para você, não é para ninguém, mas é para todos. Pois, mesmo que o senhor não estivesse aí me escutando, essa minha vida de palavras tinha de existir, o senhor entende? Tinha de existir. E antes que o senhor pergunte o motivo das minhas palavras tristes, eu vou lhe adiantando: Amei errado.

sábado, 26 de fevereiro de 2011

A beleza e a tristeza na arte da demora


“A gente nota as coisas quando presta atenção”
Do Filme Amor à flor da pele


O chamado novo cinema oriental tem alcançando o reconhecido de público e crítica. Podemos levar em conta esta afirmação a partir de filmes como O tigre e o dragão, de Ang Lee, Herói, de Zhang Yimou, As coisas simples da vida, de Edward Yang, Casa Vazia, de Kim Ki-duk, Amor à flor da pele, de Wong Kar Wai, entre outros.

A expressão cinema oriental, talvez incomode um pouco na medida em que ela funciona mais como uma classificação geográfica do que estética. Pois está claro que a produção dos filmes citados apresentam histórias distintas e complexas, e em cada um deles encontramos propostas bem diferentes uns dos outros. Além disso, precisamos ter sempre cautela ao utilizarmos o termo oriental, para não cairmos na tentação pré-fabricada e artificial que nos é dada sobre o Oriente.

O espectador desavisado corre o risco de perder a paciência com o filme Oriental e sair do cinema dez minutos depois de iniciada a sessão. Não porque o filme não tenha qualidades para prender a atenção, mas por que talvez este espectador ainda conserve em seu imaginário um oriente “verdadeiro” e que esperava encontrar um filme exótico, pitoresco, cheio de lances de ação como nos filmes de Bruce Lee (que já é uma produção ocidental).

O livro Orientalismo de Edward W. Said, que faz um excelente apanhado histórico-social de como o ocidente inventou o oriente e cristalizou este imaginário, evidencia o quão é forte o resultado da visão ocidental sobre o oriente e como isto dificulta a percepção real destes países

O filme Amor à flor da pele, talvez sirva para desmistificar o imaginário do verdadeiro Oriente. A produção de Wong Kar-Wai revela um oriente com temas muito próximos aos filmes ocidentais, entretanto, isto não quer dizer que o filme seja uma ocidentalização do oriente, e nem tão pouco estou utilizando o ocidente como parâmetro, mas porque a forma estética é, de certa maneira, universal. Quando falamos de universal, estamos colocando de lado espaços geográficos, políticos ou sociais, e dando lugar ao Humano, a contribuição para humanidade.

Claro que não se procura aqui idealizar o cinema do Extremo Oriente como uma espécie paraíso cinematográfico. Mas quero chamar atenção para uma reflexão que busque fugir da visão Eurocêntrica. Já que muitas vezes a representação do cinema sobre oriente sempre serviu para ratificar a visão verdadeira do Oriente.

Não há nada de errado com olhar exótico, já que é através dele que modelamos nosso olhar com o novo, com o desconhecido. O exotismo é o primeiro impacto com uma cultura estranha à nossa. O problema reside em tomar o olhar exótico como a verdadeira representação de uma cultura, isto é, um olhar que se prende a superfície pois não é capaz de aprofundar ou de pelo menos desconfiar do primeiro contato.

Amor à flor da pele se passa na Hong Kong dos anos 60. Nele os dois Protagonistas; Sra. Chaw e Sr Chow vivem crises em seus casamentos. Até que em determinado momento descobrem que estão sendo traídos por seus cônjuges. Daí por diante os dois tentam uma aproximação não apenas com o sentimento de vingança, mas porque a própria solidão de ambos os empurra para que troquem afetos. No entanto, a solidão não é o suficiente para que consumem o seus desejos, pois como diz Sra. Chaw: Não seremos como eles. Isto é, o desejo entre os dois deveria surgir não pela vingança, não pela solidão, que para eles parece indigno, mas de algo sincero e verdadeiro.
No entanto, este desejo é frustado, porque cria-se a impossibilidade da paixão já que ambos estão presos a seus cônjuges. O título do filme mostra um Amor que está à flor da pele, ou seja, um amor que está sensível ao toque, mas fechado ao coração.

É curioso como Wong Kar-Wai representa esta prisão, já que em momento algum ele nos mostra os cônjuges. Há uma espécie de apagamento identitário dessas figuras. Como se fossem as sombras do Sr Chow e da Sra. Chaw. Mas são essas sombras que intensificam o sentimento de abandono, de indiferença nos protagonistas e por isso não se permitem a consumar a paixão.
Anos se passam, no entanto, a Sra. Chaw continua casada, tolerando a traição e a indiferença do marido. Quanto ao Sr Chow, separou-se. Kar-Wai poderia ter optado por enfatizar dor e amargura do gênero feminino, talvez colocar em discussão as armadilhas que um casamento pode se tornar para uma mulher, como diria Simone de Beauvoir, já que o filme se passa nos 60, momento em que o feminismo ganha força. Mas acredito, que isto não precisa ser dito ou enfatizado, pois o próprio desfecho do filme dá conta disso.

Creio que Kar-Wai vai além dos clichês das figurações de gênero. Porque cria uma atmosfera de desilusão e carência que permeia a sociedade contemporânea. E que portanto atinge tanto mulheres quanto homens. Para isso, o diretor utiliza a observação voyerística, captando em close-ups, roupas, gestos olhares, a fumaça dos cigarros, a mão que escorrega no ombro, ou simplesmente a chuva que cai na parede.

Embora seja difícil caracterizar esteticamente o cinema do extremo oriente, podemos, talvez, traçar em linhas estéticas centrais a bordagem de filmes dessa região, sobretudo em Amor à flor da pele. A primeira, e talvez a maior característica deste cinema seja a dilatação do tempo, a preferência de longas cenas que é um movimento contrário ao da compreensão promovida pelo cinema norte-americano.

Em segundo, podemos dizer que Kar-Wai, propõe uma reeducação do olhar e, assim, recuperar o tempo de permanência do olhar. Amor à flor da pele permite que o espectador passeie os olhos pela tela, estranhe o deslocamento sonoro no espaço, estranhe a demora de um close-up sobre a fumaça, sobre a névoa, justamente porque o cinema perdeu a capacidade de observar o mundo. Porque a vida não é aquela de imagens de vídeo clipe onde não há lugar para a contemplação. Amor à flor da pele é uma celebração da observação. Pois as imagens traduzem sentimentos onde a palavra não chega.

O clima de lassidão fica por conta do bolero tocado em diversas cenas. O filme é uma poética da contemplação. Onde observamos a beleza e a tristeza na arte da demora, e que é um modo de desacelerar este ritmo frenético que a vida contemporânea quer nos impor.

sexta-feira, 25 de fevereiro de 2011

Sobre as mandingas da mulata velha


Foi num dia chuvoso e triste (porque os dias chuvosos são sempre tristes) que tive o prazer de conhecer o compositor, historiador e escritor Nei Lopes. A alegria de Nei destoava daquele dia cinzento e com algumas poucas palavras iniciais pude perceber que estava diante de uma das principais referências intelectuais da cultura brasileira.


Após um agradável almoço com Fernando Ramos. Acompanhei Nei Lopes até seu hotel localizado na rua Fernando Machado. No trajeto, que incluiu a rua Riachuelo e a Borges o compositor carioca mostrou-se muito simpático, observava com atenção as ruas do centro, seus passos eram curtos, porém firmes. Naquele breve trajeto conversamos um pouco sobre seu livro “mandigas”, como ele se referiu, depois externou sua preocupação de não haver dentro da literatura brasileira, nenhum livro que representasse os negros adequadamente, fez apenas uma ressalva; a de que o livro Josué Montello “Os tambores de São Luiz”. “seria um livro que fugiria dos estereótipos”. Sua preocupação vai na linha de que mesmo na ficção contemporânea a representação do negro continua estigmatizada, sempre associada a violência e a miséria, com o argumento de que é a “realidade”, mas Nei Lopes complementou “pode ser a realidade mas não é a única”. Neste mesmo trajeto cumprimentei-o pela bela composição de “Samba do Irajá”, Nei contou que certa vez, quando gravou este samba com Chico Buarque, Chico disse ter sentido um arrepio, algo que não sabia explicar, tamanha era a beleza do samba.


Embora pouco conhecido entre os gaúchos, Nei Lopes é dono de uma ampla produção musical de qualidade e sofisticação. Além disso, Nei possui parcerias com Djavan, Milton Nascimento, Gilberto Gil, Ed Mota, João Bosco, entre outros. Tendo uma extensa produção teórica centrada na cultura afro-brasileira, com mais de 20 livros publicados (entre eles a ambiciosa Enciclopédia Brasileira da Diáspora Africana), Nei Lopes esteve em Porto Alegre para lançar seu primeiro romance “Mandingas da mulata velha na cidade nova”, pela editora Língua Geral, durante o Festipoa.


“Mandingas” merece ser saudada porque é uma obra peculiar, já que se propõe a transportar o leitor para dentro de um Rio de Janeiro mitológico, como bem coloca o escritor Alberto Mussa, no prefácio do livro. O cenário ambientado em plena Praça Onze, ou seja, no berço do samba, abrange o período de 1870 a 1930 e está repleto de baianas, batuques, blocos de carnaval e manifestações religiosas. O autor põe nesta cidade mítica personalidades centrais que constituíram a identidade carioca, como por exemplo, Catulo da Paixão Cearense, José do Patrocínio, André Rebouças, João Candido, Sinhô e muitos outros.

O livro está divido em duas partes; na primeira, é o repórter Henrique da Costa, ou “Costinha”, ou “Diga-mais” (hilário cacoete do repórter ao indagar seus interlocutores) quem conduz a narrativa em busca de informações sobre Tia Honorata que é na verdade a metáfora das baianas que compuseram a identidade do Rio de Janeiro. Na segunda parte, temos “a verdadeira história” de Tia Honorata sendo contada através de um manuscrito.


Aliás, é interessante observar que a imagem de Honorata é construída por diferentes relatos, desde os mais eruditos até os relatos da “gente do povo”. No caso dos mais eruditos, os termos etimológicos e técnicos contidos nas falas dos personagens são explicados de modo quase didático, mas sem subestimar o conhecimento do leitor. Além disso, o autor acerta no tom da narrativa ao produzir efeitos de humor em algumas cenas.
Nesta ficcionalização histórica, Nei Lopes lança mão de um vigor teórico consistente sobre a cultura brasileira e africana, demonstrando o jogo sincrético entre as religiões do Candomblé, do Catolicismo e da cultura Mulçumana.


Deste modo, “Mandingas da mulata velha na cidade nova” também se propõe a refletir sobre as influências islâmicas reproduzidas no complexo mundo religioso carioca. É, portanto, uma investigação das heranças muçulmanas, heranças essas que construíram os mitos fundadores da religião de matriz africana no Brasil. Não é a toa que Nei Lopes evoca a Guerra dos Malês ocorrida em 1835, escravos negros que sabiam a língua árabe e liam as suras do Alcorão. Assim como coloca personagens recitando belas passagens do Livro Sagrado, também critica a distorção da cultura islâmica e promove um regresso primoroso as origens identitárias do Brasil profundamente marcadas pela diáspora africana.


Enfim, “A mulata velha”, esta grande metáfora da Bahia, reconstitui, como o próprio narrador afirma, uma “África em miniatura” dentro da cidade nova. É o repórter Costinha (ou Diga Mais) que nos conduz nesta investigação pelas ruas do Rio de Janeiro, nesta busca pela ancestralidade da cultura não só carioca, mas, sobretudo, da cultura brasileira. Esperemos a volta deste “mandiga” para ter a oportunidade de solicitar a ele que “Diga mais”.

terça-feira, 22 de fevereiro de 2011

Breve reflexão sobre o abandono

Estive refletindo sobre a utilidade dos livros que existem em minha casa. Certa vez, um amigo que não via há muito tempo pôs os olhos em meus livros e perguntou se realmente todos aqueles exemplares me foram úteis, pensei, demorei um pouco a responder. Após alguns instantes respondi-lhe que não, que bem pelo contrário, que todos aqueles livros ali, repousados na estante, me haviam sido de uma completa inutilidade, pois, as coisas sem função sempre me atraíram, um livro está para mim num tempo depois da utilidade. Talvez no tempo da delicadeza. Eu explico.
O poeta Manoel de Barros em sua obra “livro sobre nada” exemplifica o que estou tentando dizer. Em algum poema ele disse: “Um vaso abandonado pode um dia milagrar violetas” ou ainda “o abandono me protege”, isto é, as coisas sem utilidade social servem para a arte e para poesia, pois, é o abandono das coisas que protegem o poeta e o artista da banalidade social.
Ontem mesmo, ao observar um relógio com os seus ponteiros parados, comprovei isso. Fiquei poeta; percebi que um relógio estragado é uma afronta, é um protesto contra o tempo inventado pelos homens, porque cada silêncio de um ponteiro parado é uma elegia às horas mortas. Um relógio estragado ilude o atraso, dói o tempo. Exerce eternidade.
Ao iniciar uma aula de literatura, em uma turma nova, sempre faço a seguinte pergunta; “para que serve literatura? Qual a utilidade de um poema?” Há um silêncio inicial. Depois, alguns poucos tentam provar que a literatura ou um poema servirão para alguma coisa no futuro. É neste momento que digo colocando um tom grave em minha voz: ”pois querem saber? Tanto a literatura quanto um poema não servem para nada”. Então, todos se sentem incomodados com minha resposta, mas continuo: “Sim, não servem para nada, mas servem para tudo”. E quando tenho total atenção de todos, explico que a poesia não tem função social, não é como uma nota de dinheiro, não é um liquidificador. Neste sentido, poesia não tem utilidade nenhuma. No entanto, é ela que revela o mundo, tudo aquilo que os cientistas querem provar com suas teses e pesquisas o poeta já sabe há muito tempo. Só o poeta e o artista conseguem ver a vida. Só eles conseguem tocar seus próprios limites, pois, conhecem todas as solidões, profundezas e as angústias humanas.
Mas voltando aos livros, sempre que compro um livro não penso em que ele me poderá ser útil. Faço outro raciocínio; penso em como poderei vivê-lo, senti-lo, porque viver um livro é muito mais necessário e importante do que encontrar-lhe uma utilidade. Busco, em última instância, a sabedoria primordial, aquela que se esconde no fundo das coisas impalpáveis. Ao ler um livro não tenho um objetivo aparente, meu objetivo é subjetivo. Em livros técnicos, quando bem escritos, encontramos uma frase tão bela e significativa quanto a metáfora de um poema.
Portanto, é no abandono da utilidade que encontramos o milagre da poesia, conhece-se, enfim, as coisas que estão nas entrelinhas do horizonte e na lucidez de um livro.

segunda-feira, 21 de fevereiro de 2011

No fim das contas, todos nós carregamos palavras guardadas. Algumas são ditas, outras morrerão dentro de nós. Algumas são impedidas de nascer. Outras se escodem. Mas há aquelas que saem para o mundo e para as pessoas. Palavras vivas espalhadas sobre os telhados e sobre a dor dos outros.

É sobre estas palavras guardadas que o conto a seguir vai tratar.

O leitor, se tiver paciência, vai encontrar a cada semana uma parte do conto.

Eis o primeiro trecho:
“Vou dizer-te algo em segredo. Esta é a hora das grandes confidências. De dizer grandes coisas ao ouvido: Não diria a qualquer um, mas a ti, sim, te digo. Escuta”

Walt Whitman

Há muitas maneiras de se guardar um passado. Cada um guarda de um jeito. Tem gente que guarda fotos, jóias de família, roupas. Eu não, eu guardo palavras, não em palavras escritas mas em palavras vivas, dessas que a gente adormece no corpo para acordá-las quando precisamos viver um passado. Não vou mentir, também tenho essas coisas de objetos, mas é diferente pois eles não servem para serem guardados. Os objetos servem só para gente lembrar, não para viver. Agora, o que eu posso lhe adiantar é que meus acontecimentos não mudaram o mundo Se ao senhor interessa uma vivência assim; sem importância; posso então dizer que minha vida não teve fortunas. Talvez minha travessia seja apagada depois que lhe contar esta história, pois são estas palavras guardadas é que sustentam minhas pernas. Minha travessia pela a vida é nula. Talvez possa, assim, o senhor, explicar uma vida que nem a minha. Saiba me dizer também para que serve o viver se morte sempre vem. Quando eu morrer, não precisarei deixar cartas explicando meus dias, minha pele diz tudo, meu rosto é minha identidade. Vê, ali, minha mulher no retrato? Pois ela foi antes de mim. O senhor acha que ela precisa de uma carta explicando alguma coisa? A história de uma pessoa cabe nas marcas da pele. Cada vez que um vento bate no rosto, a gente aprende a guardar um passado. Um dia Deus levou minha mulher, pois Deus é assim; nos abençoa uma vida e depois nos arranca para mais adiante plantar de novo dentro da gente, mas Ele planta diferente. Planta a dor, planta saudade. Deus é uma invasão que a gente consente pra se acostumar com a tristeza. A tristeza é um jeito conformado de sentir a dor. Por isso que eu prefiro o desespero. Ora, o desespero ainda é um grito contra o irremediável, ainda é um protesto. Desespero é coragem.