domingo, 27 de fevereiro de 2011

Segunda parte do conto "Palavras guardadas"

Primeira parte:

Há muitas maneiras de se guardar um passado. Cada um guarda de um jeito. Tem gente que guarda fotos, jóias de família, roupas. Eu não, eu guardo palavras, não em palavras escritas mas em palavras vivas, dessas que a gente adormece no corpo para acordá-las quando precisamos viver um passado. Não vou mentir, também tenho essas coisas de objetos, mas é diferente pois eles não servem para serem guardados. Os objetos servem só para gente lembrar, não para viver. Agora, o que eu posso lhe adiantar é que meus acontecimentos não mudaram o mundo Se ao senhor interessa uma vivência assim; sem importância; posso então dizer que minha vida não teve fortunas. Talvez minha travessia seja apagada depois que lhe contar esta história, pois são estas palavras guardadas é que sustentam minhas pernas. Minha travessia pela a vida é nula. Talvez possa, assim, o senhor, explicar uma vida que nem a minha. Saiba me dizer também para que serve o viver se morte sempre vem. Quando eu morrer, não precisarei deixar cartas explicando meus dias, minha pele diz tudo, meu rosto é minha identidade. Vê, ali, minha mulher no retrato? Pois ela foi antes de mim. O senhor acha que ela precisa de uma carta explicando alguma coisa? A história de uma pessoa cabe nas marcas da pele. Cada vez que um vento bate no rosto, a gente aprende a guardar um passado. Um dia Deus levou minha mulher, pois Deus é assim; nos abençoa uma vida e depois nos arranca para mais adiante plantar de novo dentro da gente, mas Ele planta diferente. Planta a dor, planta saudade. Deus é uma invasão que a gente consente pra se acostumar com a tristeza. A tristeza é um jeito conformado de sentir a dor. Por isso que eu prefiro o desespero. Ora, o desespero ainda é um grito contra o irremediável, ainda é um protesto. Desespero é coragem.
Segunda parte:
Mas não se engane, pois a época do meu desespero já passou. A coragem desistiu de mim. Sou um homem conformado. Espero o tempo. Depois que me aposentei passei contar o tempo diferente, pois quando se é jovem contamos o quanto já vivemos, agora só conto o quanto me resta de vida. Eu não acredito mais em Deus. Também não sou pagão, sou religioso. No entanto, não acredito em Deus, mas eu o amo. O senhor compreende isso? Com toda a minha força, eu digo que o amo. Seria capaz de entregar minha vida a Ele. Deus é nome que a gente empresta para o que não sabemos. Toda a morte é um pedaço de Deus, eu sei e aceito. Deus não envelhece por isso não conhece a dor. Só os velhos sofrem com a falta de eternidade. Talvez quando o senhor voltar aqui novamente já não vou estar. A velhice é castigo, pois somos privados de tudo: Primeiro começa com uma canseira nos pulmões, uma fraqueza nas pernas. E num outro dia você vai ao banheiro e percebe que tem dificuldade de urinar. Num outro dia a visão falha de vez e enxergamos mal para sempre. Num outro dia temos que parar de beber, de comer doces. Num outro as mulheres desistem de nós. Em seguida, começa o aprendizado das humilhações. Envelhecer faz a gente engolir desaforos. A humilhação da aposentadoria, falo de toda essa papelada que o governo pede e que nunca dá certo. O tempo avança, até que um dia, depois de anos na fila, entre o sol e a chuva a gente consegue receber o nosso salário. É por tudo isso que, às vezes, eu não concordo com a vida. Discordo dela até o fim. Ninguém escapa do peso de viver. Agora, preste atenção: essa minha história não é para você, não é para ninguém, mas é para todos. Pois, mesmo que o senhor não estivesse aí me escutando, essa minha vida de palavras tinha de existir, o senhor entende? Tinha de existir. E antes que o senhor pergunte o motivo das minhas palavras tristes, eu vou lhe adiantando: Amei errado.

sábado, 26 de fevereiro de 2011

A beleza e a tristeza na arte da demora


“A gente nota as coisas quando presta atenção”
Do Filme Amor à flor da pele


O chamado novo cinema oriental tem alcançando o reconhecido de público e crítica. Podemos levar em conta esta afirmação a partir de filmes como O tigre e o dragão, de Ang Lee, Herói, de Zhang Yimou, As coisas simples da vida, de Edward Yang, Casa Vazia, de Kim Ki-duk, Amor à flor da pele, de Wong Kar Wai, entre outros.

A expressão cinema oriental, talvez incomode um pouco na medida em que ela funciona mais como uma classificação geográfica do que estética. Pois está claro que a produção dos filmes citados apresentam histórias distintas e complexas, e em cada um deles encontramos propostas bem diferentes uns dos outros. Além disso, precisamos ter sempre cautela ao utilizarmos o termo oriental, para não cairmos na tentação pré-fabricada e artificial que nos é dada sobre o Oriente.

O espectador desavisado corre o risco de perder a paciência com o filme Oriental e sair do cinema dez minutos depois de iniciada a sessão. Não porque o filme não tenha qualidades para prender a atenção, mas por que talvez este espectador ainda conserve em seu imaginário um oriente “verdadeiro” e que esperava encontrar um filme exótico, pitoresco, cheio de lances de ação como nos filmes de Bruce Lee (que já é uma produção ocidental).

O livro Orientalismo de Edward W. Said, que faz um excelente apanhado histórico-social de como o ocidente inventou o oriente e cristalizou este imaginário, evidencia o quão é forte o resultado da visão ocidental sobre o oriente e como isto dificulta a percepção real destes países

O filme Amor à flor da pele, talvez sirva para desmistificar o imaginário do verdadeiro Oriente. A produção de Wong Kar-Wai revela um oriente com temas muito próximos aos filmes ocidentais, entretanto, isto não quer dizer que o filme seja uma ocidentalização do oriente, e nem tão pouco estou utilizando o ocidente como parâmetro, mas porque a forma estética é, de certa maneira, universal. Quando falamos de universal, estamos colocando de lado espaços geográficos, políticos ou sociais, e dando lugar ao Humano, a contribuição para humanidade.

Claro que não se procura aqui idealizar o cinema do Extremo Oriente como uma espécie paraíso cinematográfico. Mas quero chamar atenção para uma reflexão que busque fugir da visão Eurocêntrica. Já que muitas vezes a representação do cinema sobre oriente sempre serviu para ratificar a visão verdadeira do Oriente.

Não há nada de errado com olhar exótico, já que é através dele que modelamos nosso olhar com o novo, com o desconhecido. O exotismo é o primeiro impacto com uma cultura estranha à nossa. O problema reside em tomar o olhar exótico como a verdadeira representação de uma cultura, isto é, um olhar que se prende a superfície pois não é capaz de aprofundar ou de pelo menos desconfiar do primeiro contato.

Amor à flor da pele se passa na Hong Kong dos anos 60. Nele os dois Protagonistas; Sra. Chaw e Sr Chow vivem crises em seus casamentos. Até que em determinado momento descobrem que estão sendo traídos por seus cônjuges. Daí por diante os dois tentam uma aproximação não apenas com o sentimento de vingança, mas porque a própria solidão de ambos os empurra para que troquem afetos. No entanto, a solidão não é o suficiente para que consumem o seus desejos, pois como diz Sra. Chaw: Não seremos como eles. Isto é, o desejo entre os dois deveria surgir não pela vingança, não pela solidão, que para eles parece indigno, mas de algo sincero e verdadeiro.
No entanto, este desejo é frustado, porque cria-se a impossibilidade da paixão já que ambos estão presos a seus cônjuges. O título do filme mostra um Amor que está à flor da pele, ou seja, um amor que está sensível ao toque, mas fechado ao coração.

É curioso como Wong Kar-Wai representa esta prisão, já que em momento algum ele nos mostra os cônjuges. Há uma espécie de apagamento identitário dessas figuras. Como se fossem as sombras do Sr Chow e da Sra. Chaw. Mas são essas sombras que intensificam o sentimento de abandono, de indiferença nos protagonistas e por isso não se permitem a consumar a paixão.
Anos se passam, no entanto, a Sra. Chaw continua casada, tolerando a traição e a indiferença do marido. Quanto ao Sr Chow, separou-se. Kar-Wai poderia ter optado por enfatizar dor e amargura do gênero feminino, talvez colocar em discussão as armadilhas que um casamento pode se tornar para uma mulher, como diria Simone de Beauvoir, já que o filme se passa nos 60, momento em que o feminismo ganha força. Mas acredito, que isto não precisa ser dito ou enfatizado, pois o próprio desfecho do filme dá conta disso.

Creio que Kar-Wai vai além dos clichês das figurações de gênero. Porque cria uma atmosfera de desilusão e carência que permeia a sociedade contemporânea. E que portanto atinge tanto mulheres quanto homens. Para isso, o diretor utiliza a observação voyerística, captando em close-ups, roupas, gestos olhares, a fumaça dos cigarros, a mão que escorrega no ombro, ou simplesmente a chuva que cai na parede.

Embora seja difícil caracterizar esteticamente o cinema do extremo oriente, podemos, talvez, traçar em linhas estéticas centrais a bordagem de filmes dessa região, sobretudo em Amor à flor da pele. A primeira, e talvez a maior característica deste cinema seja a dilatação do tempo, a preferência de longas cenas que é um movimento contrário ao da compreensão promovida pelo cinema norte-americano.

Em segundo, podemos dizer que Kar-Wai, propõe uma reeducação do olhar e, assim, recuperar o tempo de permanência do olhar. Amor à flor da pele permite que o espectador passeie os olhos pela tela, estranhe o deslocamento sonoro no espaço, estranhe a demora de um close-up sobre a fumaça, sobre a névoa, justamente porque o cinema perdeu a capacidade de observar o mundo. Porque a vida não é aquela de imagens de vídeo clipe onde não há lugar para a contemplação. Amor à flor da pele é uma celebração da observação. Pois as imagens traduzem sentimentos onde a palavra não chega.

O clima de lassidão fica por conta do bolero tocado em diversas cenas. O filme é uma poética da contemplação. Onde observamos a beleza e a tristeza na arte da demora, e que é um modo de desacelerar este ritmo frenético que a vida contemporânea quer nos impor.

sexta-feira, 25 de fevereiro de 2011

Sobre as mandingas da mulata velha


Foi num dia chuvoso e triste (porque os dias chuvosos são sempre tristes) que tive o prazer de conhecer o compositor, historiador e escritor Nei Lopes. A alegria de Nei destoava daquele dia cinzento e com algumas poucas palavras iniciais pude perceber que estava diante de uma das principais referências intelectuais da cultura brasileira.


Após um agradável almoço com Fernando Ramos. Acompanhei Nei Lopes até seu hotel localizado na rua Fernando Machado. No trajeto, que incluiu a rua Riachuelo e a Borges o compositor carioca mostrou-se muito simpático, observava com atenção as ruas do centro, seus passos eram curtos, porém firmes. Naquele breve trajeto conversamos um pouco sobre seu livro “mandigas”, como ele se referiu, depois externou sua preocupação de não haver dentro da literatura brasileira, nenhum livro que representasse os negros adequadamente, fez apenas uma ressalva; a de que o livro Josué Montello “Os tambores de São Luiz”. “seria um livro que fugiria dos estereótipos”. Sua preocupação vai na linha de que mesmo na ficção contemporânea a representação do negro continua estigmatizada, sempre associada a violência e a miséria, com o argumento de que é a “realidade”, mas Nei Lopes complementou “pode ser a realidade mas não é a única”. Neste mesmo trajeto cumprimentei-o pela bela composição de “Samba do Irajá”, Nei contou que certa vez, quando gravou este samba com Chico Buarque, Chico disse ter sentido um arrepio, algo que não sabia explicar, tamanha era a beleza do samba.


Embora pouco conhecido entre os gaúchos, Nei Lopes é dono de uma ampla produção musical de qualidade e sofisticação. Além disso, Nei possui parcerias com Djavan, Milton Nascimento, Gilberto Gil, Ed Mota, João Bosco, entre outros. Tendo uma extensa produção teórica centrada na cultura afro-brasileira, com mais de 20 livros publicados (entre eles a ambiciosa Enciclopédia Brasileira da Diáspora Africana), Nei Lopes esteve em Porto Alegre para lançar seu primeiro romance “Mandingas da mulata velha na cidade nova”, pela editora Língua Geral, durante o Festipoa.


“Mandingas” merece ser saudada porque é uma obra peculiar, já que se propõe a transportar o leitor para dentro de um Rio de Janeiro mitológico, como bem coloca o escritor Alberto Mussa, no prefácio do livro. O cenário ambientado em plena Praça Onze, ou seja, no berço do samba, abrange o período de 1870 a 1930 e está repleto de baianas, batuques, blocos de carnaval e manifestações religiosas. O autor põe nesta cidade mítica personalidades centrais que constituíram a identidade carioca, como por exemplo, Catulo da Paixão Cearense, José do Patrocínio, André Rebouças, João Candido, Sinhô e muitos outros.

O livro está divido em duas partes; na primeira, é o repórter Henrique da Costa, ou “Costinha”, ou “Diga-mais” (hilário cacoete do repórter ao indagar seus interlocutores) quem conduz a narrativa em busca de informações sobre Tia Honorata que é na verdade a metáfora das baianas que compuseram a identidade do Rio de Janeiro. Na segunda parte, temos “a verdadeira história” de Tia Honorata sendo contada através de um manuscrito.


Aliás, é interessante observar que a imagem de Honorata é construída por diferentes relatos, desde os mais eruditos até os relatos da “gente do povo”. No caso dos mais eruditos, os termos etimológicos e técnicos contidos nas falas dos personagens são explicados de modo quase didático, mas sem subestimar o conhecimento do leitor. Além disso, o autor acerta no tom da narrativa ao produzir efeitos de humor em algumas cenas.
Nesta ficcionalização histórica, Nei Lopes lança mão de um vigor teórico consistente sobre a cultura brasileira e africana, demonstrando o jogo sincrético entre as religiões do Candomblé, do Catolicismo e da cultura Mulçumana.


Deste modo, “Mandingas da mulata velha na cidade nova” também se propõe a refletir sobre as influências islâmicas reproduzidas no complexo mundo religioso carioca. É, portanto, uma investigação das heranças muçulmanas, heranças essas que construíram os mitos fundadores da religião de matriz africana no Brasil. Não é a toa que Nei Lopes evoca a Guerra dos Malês ocorrida em 1835, escravos negros que sabiam a língua árabe e liam as suras do Alcorão. Assim como coloca personagens recitando belas passagens do Livro Sagrado, também critica a distorção da cultura islâmica e promove um regresso primoroso as origens identitárias do Brasil profundamente marcadas pela diáspora africana.


Enfim, “A mulata velha”, esta grande metáfora da Bahia, reconstitui, como o próprio narrador afirma, uma “África em miniatura” dentro da cidade nova. É o repórter Costinha (ou Diga Mais) que nos conduz nesta investigação pelas ruas do Rio de Janeiro, nesta busca pela ancestralidade da cultura não só carioca, mas, sobretudo, da cultura brasileira. Esperemos a volta deste “mandiga” para ter a oportunidade de solicitar a ele que “Diga mais”.

terça-feira, 22 de fevereiro de 2011

Breve reflexão sobre o abandono

Estive refletindo sobre a utilidade dos livros que existem em minha casa. Certa vez, um amigo que não via há muito tempo pôs os olhos em meus livros e perguntou se realmente todos aqueles exemplares me foram úteis, pensei, demorei um pouco a responder. Após alguns instantes respondi-lhe que não, que bem pelo contrário, que todos aqueles livros ali, repousados na estante, me haviam sido de uma completa inutilidade, pois, as coisas sem função sempre me atraíram, um livro está para mim num tempo depois da utilidade. Talvez no tempo da delicadeza. Eu explico.
O poeta Manoel de Barros em sua obra “livro sobre nada” exemplifica o que estou tentando dizer. Em algum poema ele disse: “Um vaso abandonado pode um dia milagrar violetas” ou ainda “o abandono me protege”, isto é, as coisas sem utilidade social servem para a arte e para poesia, pois, é o abandono das coisas que protegem o poeta e o artista da banalidade social.
Ontem mesmo, ao observar um relógio com os seus ponteiros parados, comprovei isso. Fiquei poeta; percebi que um relógio estragado é uma afronta, é um protesto contra o tempo inventado pelos homens, porque cada silêncio de um ponteiro parado é uma elegia às horas mortas. Um relógio estragado ilude o atraso, dói o tempo. Exerce eternidade.
Ao iniciar uma aula de literatura, em uma turma nova, sempre faço a seguinte pergunta; “para que serve literatura? Qual a utilidade de um poema?” Há um silêncio inicial. Depois, alguns poucos tentam provar que a literatura ou um poema servirão para alguma coisa no futuro. É neste momento que digo colocando um tom grave em minha voz: ”pois querem saber? Tanto a literatura quanto um poema não servem para nada”. Então, todos se sentem incomodados com minha resposta, mas continuo: “Sim, não servem para nada, mas servem para tudo”. E quando tenho total atenção de todos, explico que a poesia não tem função social, não é como uma nota de dinheiro, não é um liquidificador. Neste sentido, poesia não tem utilidade nenhuma. No entanto, é ela que revela o mundo, tudo aquilo que os cientistas querem provar com suas teses e pesquisas o poeta já sabe há muito tempo. Só o poeta e o artista conseguem ver a vida. Só eles conseguem tocar seus próprios limites, pois, conhecem todas as solidões, profundezas e as angústias humanas.
Mas voltando aos livros, sempre que compro um livro não penso em que ele me poderá ser útil. Faço outro raciocínio; penso em como poderei vivê-lo, senti-lo, porque viver um livro é muito mais necessário e importante do que encontrar-lhe uma utilidade. Busco, em última instância, a sabedoria primordial, aquela que se esconde no fundo das coisas impalpáveis. Ao ler um livro não tenho um objetivo aparente, meu objetivo é subjetivo. Em livros técnicos, quando bem escritos, encontramos uma frase tão bela e significativa quanto a metáfora de um poema.
Portanto, é no abandono da utilidade que encontramos o milagre da poesia, conhece-se, enfim, as coisas que estão nas entrelinhas do horizonte e na lucidez de um livro.

segunda-feira, 21 de fevereiro de 2011

No fim das contas, todos nós carregamos palavras guardadas. Algumas são ditas, outras morrerão dentro de nós. Algumas são impedidas de nascer. Outras se escodem. Mas há aquelas que saem para o mundo e para as pessoas. Palavras vivas espalhadas sobre os telhados e sobre a dor dos outros.

É sobre estas palavras guardadas que o conto a seguir vai tratar.

O leitor, se tiver paciência, vai encontrar a cada semana uma parte do conto.

Eis o primeiro trecho:
“Vou dizer-te algo em segredo. Esta é a hora das grandes confidências. De dizer grandes coisas ao ouvido: Não diria a qualquer um, mas a ti, sim, te digo. Escuta”

Walt Whitman

Há muitas maneiras de se guardar um passado. Cada um guarda de um jeito. Tem gente que guarda fotos, jóias de família, roupas. Eu não, eu guardo palavras, não em palavras escritas mas em palavras vivas, dessas que a gente adormece no corpo para acordá-las quando precisamos viver um passado. Não vou mentir, também tenho essas coisas de objetos, mas é diferente pois eles não servem para serem guardados. Os objetos servem só para gente lembrar, não para viver. Agora, o que eu posso lhe adiantar é que meus acontecimentos não mudaram o mundo Se ao senhor interessa uma vivência assim; sem importância; posso então dizer que minha vida não teve fortunas. Talvez minha travessia seja apagada depois que lhe contar esta história, pois são estas palavras guardadas é que sustentam minhas pernas. Minha travessia pela a vida é nula. Talvez possa, assim, o senhor, explicar uma vida que nem a minha. Saiba me dizer também para que serve o viver se morte sempre vem. Quando eu morrer, não precisarei deixar cartas explicando meus dias, minha pele diz tudo, meu rosto é minha identidade. Vê, ali, minha mulher no retrato? Pois ela foi antes de mim. O senhor acha que ela precisa de uma carta explicando alguma coisa? A história de uma pessoa cabe nas marcas da pele. Cada vez que um vento bate no rosto, a gente aprende a guardar um passado. Um dia Deus levou minha mulher, pois Deus é assim; nos abençoa uma vida e depois nos arranca para mais adiante plantar de novo dentro da gente, mas Ele planta diferente. Planta a dor, planta saudade. Deus é uma invasão que a gente consente pra se acostumar com a tristeza. A tristeza é um jeito conformado de sentir a dor. Por isso que eu prefiro o desespero. Ora, o desespero ainda é um grito contra o irremediável, ainda é um protesto. Desespero é coragem.