segunda-feira, 14 de março de 2011

Palavras Guardadas - Parte 3

Parte 1
Há muitas maneiras de se guardar um passado. Cada um guarda de um jeito. Tem gente que guarda fotos, jóias de família, roupas. Eu não, eu guardo palavras, não em palavras escritas mas em palavras vivas, dessas que a gente adormece no corpo para acordá-las quando precisamos viver um passado. Não vou mentir, também tenho essas coisas de objetos, mas é diferente, pois eles não servem para serem guardados. Os objetos servem só para gente lembrar, não para viver. Agora, o que eu posso lhe adiantar é que meus acontecimentos não mudaram o mundo. Se ao senhor interessa uma vivência assim; sem importância; posso então dizer que minha vida não teve fortunas. Talvez minha travessia seja apagada depois que lhe contar esta história, pois são estas palavras guardadas é que sustentam minhas pernas. Minha travessia pela a vida é nula. Talvez possa, assim, o senhor, explicar uma vida que nem a minha. Saiba me dizer também para que serve o viver se morte sempre vem. Quando eu morrer, não precisarei deixar cartas explicando meus dias, minha pele diz tudo, meu rosto é minha identidade. Vê, ali, minha mulher no retrato? Pois ela foi antes de mim. O senhor acha que ela precisa de uma carta explicando alguma coisa? A história de uma pessoa cabe nas marcas da pele. Cada vez que um vento bate no rosto, a gente aprende a guardar um passado. Um dia Deus levou minha mulher, pois Deus é assim; nos abençoa uma vida e depois nos arranca para mais adiante plantar de novo dentro da gente, mas Ele planta diferente. Planta a dor, planta saudade. Deus é uma invasão que a gente consente pra se acostumar com a tristeza. A tristeza é um jeito conformado de sentir a dor. Por isso que eu prefiro o desespero. Ora, o desespero ainda é um grito contra o irremediável, ainda é um protesto. Desespero é coragem.
Parte 2

Mas não se engane, pois a época do meu desespero já passou. A coragem desistiu de mim. Sou um homem conformado. Espero o tempo. Depois que me aposentei passei contar o tempo diferente, pois quando se é jovem contamos o quanto já vivemos, agora só conto o quanto me resta de vida. Eu não acredito mais em Deus. Também não sou pagão, sou religioso. No entanto, não acredito em Deus, mas eu o amo. O senhor compreende isso? Com toda a minha força, eu digo que o amo. Seria capaz de entregar minha vida a Ele. Deus é nome que a gente empresta para o que não sabemos. Toda a morte é um pedaço de Deus, eu sei e aceito. Deus não envelhece por isso não conhece a dor. Só os velhos sofrem com a falta de eternidade. Talvez quando o senhor voltar aqui novamente já não vou estar. A velhice é castigo, pois somos privados de tudo: Primeiro começa com uma canseira nos pulmões, uma fraqueza nas pernas. E num outro dia você vai ao banheiro e percebe que tem dificuldade de urinar. Num outro dia a visão falha de vez e enxergamos mal para sempre. Num outro dia temos que parar de beber, de comer doces. Num outro as mulheres desistem de nós. Em seguida, começa o aprendizado das humilhações. Envelhecer faz a gente engolir desaforos. A humilhação da aposentadoria, falo de toda essa papelada que o governo pede e que nunca dá certo. O tempo avança, até que um dia, depois de anos na fila, entre o sol e a chuva a gente consegue receber o nosso salário. É por tudo isso que, às vezes, eu não concordo com a vida. Discordo dela até o fim. Ninguém escapa do peso de viver. Agora, preste atenção: essa minha história não é para você, não é para ninguém, mas é para todos. Pois, mesmo que o senhor não estivesse aí me escutando, essa minha vida de palavras tinha de existir, o senhor entende? Tinha de existir. E antes que o senhor pergunte o motivo das minhas palavras tristes, eu vou lhe adiantando: Amei errado.
Parte 3

Mas, antes mesmo que o senhor me julgue eu lhe pergunto uma coisa: existe um amar certo? Fui injusto. Mas existe justiça no amor? Às vezes, paro meu olho naquele relógio... É, eu sei, está parado, não funciona. Não tem mais jeito. Foi o tempo quem matou ele. Um relógio é sempre uma ilusão, pois ele acha que pode mandar no tempo, mas lhe garanto: o tempo é sempre maior que um ponteiro. No entanto, se o senhor se achegar mais pertinho dele, vai notar que ele parou de propósito, por pura teimosia. Parou porque se recusou a contar... É danado este relógio. Na verdade, foi o tempo que desistiu dele. Este relógio ilude os atrasos. Ele aprendeu a doer o tempo e a medir o eterno. Sim, o eterno é medível. O eterno cabe na infância de Deus. Parado, assim, foi o jeito que ele encontrou de vergar as eras. Foi minha mulher quem me deu este relógio. Nunca vou permitir que toquem nele, pois ele é só o que me resta. Na verdade, não me importo com este relógio. Não gosto de guardar objetos, como já disse, porém o que me importa, é o protesto dele. Sei que isso pode parecer loucura, mas na velhice a gente não precisa mais se preocupar com a lucidez, na velhice a gente desaprende a mentir, a verdade fica mais próxima. Preciso dizer que quando minha mulher morreu, sequei por dentro, pois chorei tudo que havia em mim. Conheci o deserto e tive de endurecer. Agora não sei mais chorar. Por isso me acostumei a inventar lágrimas, embora eu saiba que lágrimas a gente não inventa, a gente nasce.

Agora, se o senhor me permite, eu preciso lhe contar como foi que conheci minha mulher. Isso é para o senhor entender bem porque gosto de guardar palavras.

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